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Ficou mais assustador

Além das denúncias de assédio sexual e contrabando de minério, documentos mostram que João de Deus chegou a ser acusado de tráfico de drogas e tortura

Por Thiago Bronzatto e Nonato Viegas
Atualizado em 21 dez 2018, 11h07 - Publicado em 21 dez 2018, 07h00

Existem inúmeros relatos que permitem afirmar que João Teixeira de Faria, o João de Deus, encarnava há mais de três décadas dois personagens igualmente impressionantes. O primeiro, a um só tempo poderoso e humilde, tem o que muitos acreditam ser o dom da cura — de câncer em estado terminal a paralisia, de aids a depressão. O segundo, ardiloso e cruel, exibe os traços demoníacos de quem é capaz de abusar da fragilidade de doentes em sua hora mais difícil. Cinco centenas de mulheres já se apresentaram às autoridades narrando os horrores que viveram durante sessões espirituais na Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia, no interior de Goiás. Entre as vítimas está até uma das filhas do médium, que começou a ser violentada por ele aos 10 anos. Como VEJA revelou em sua edição da semana passada, ela o denunciou muito antes do escândalo, mas ninguém lhe deu crédito.

João de Deus foi preso no domingo 16. Segundo o Ministério Público, a detenção do médium se tornou necessária para garantir a “ordem pública” e assegurar a “aplicação da lei”, principalmente depois que uma das vítimas relatou à polícia que, após ter comentado com moradores de Abadiânia que havia registrado uma queixa de abuso contra João de Deus, foi ameaçadoramente advertida do risco que estava correndo. A polícia fez buscas na casa de João de Deus e no centro Dom Inácio de Loyola, onde ele realizava as curas e também praticava os abusos contra as mulheres. A coleta foi igualmente impressionante.

No fundo falso de um armário no quarto do médium e dentro de uma mala, os agentes encontraram 405 000 reais, incluindo notas de dólar, euro, peso argentino e franco suíço. O dinheiro escondido é parte da fortuna pessoal de João de Deus. Um dia antes da prisão, a polícia descobriu que o médium mantinha 35 milhões de reais em aplicações financeiras. É uma bolada digna de um prêmio da Mega-Sena e chama atenção que esteja em posse de alguém conhecido por se dedicar à caridade, sem cobrar nada por isso, ao menos publicamente. A polícia deverá investigar a origem do dinheiro e do patrimônio do médium.

À MARGEM DA LEI – A polícia fez buscas na Casa Dom Inácio de Loyola e na residência do médium: dinheiro escondido, armas e munição (Ernesto Rodrigues/Estadão Conteúdo)

Na busca, os policiais também encontraram dois revólveres de calibre 32, um de 38, uma pistola 380 e uma garrucha, além de uma grande quantidade de munição. Uma das armas estava com a numeração raspada, procedimento que os criminosos usam para dificultar qualquer rastreamento. A polícia ainda não sabe por que João de Deus mantinha um arsenal escondido dentro de casa. O passado do médium registra episódios que podem ajudar a encontrar essa resposta. Na edição anterior, VEJA mostrou um documento produzido pelo antigo Serviço Nacional de Informações (SNI) que revelava que, em 1985, o médium foi preso transportando uma carga de minério que seria contrabandeada para o exterior. Ele estava armado e confessou o crime. No depoimento que prestou à Polícia Federal, disse que faturaria o equivalente a 3,5 milhões de reais se o golpe tivesse sido bem-sucedido. Portanto, o médium, que na época já era conhecido pelas curas espirituais, também mantinha negócios além da fronteira da legalidade.

João de Deus já foi alvo de investigações ainda mais pesadas. Em 1996, três homens foram detidos e acusados de portar drogas, arrumar confusão com um segurança e furtar a bolsa de uma mulher que buscava atendimento na Casa Dom Inácio de Loyola. A polícia concluiu o inquérito e enviou o relatório à Justiça, que condenou apenas um dos suspeitos por furto. O caso, porém, voltou-se contra o médium. Ao analisar o processo, o juiz Alderico Rocha dos Santos detectou falhas de procedimento e concluiu que as acusações eram “manobras policiais coordenadas por João de Deus”, para condenar os suspeitos por “crimes que não existiram”, em razão de um “desentendimento relativo ao tráfico de drogas”.

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Os três acusados contaram que, em janeiro de 1996, foram levados à delegacia e forçados a confessar o porte de maconha, depois de ser submetidos a sessões de tortura e ameaças de morte — tudo sob o comando de João de Deus, que eles chamavam de “João Curador”. De acordo com os depoimentos de Joaquim Olímpio de Oliveira e Marcos Leite, dois dos suspeitos, o médium fazia o papel de delegado, realizando os interrogatórios e orientando a sessão de espancamento. Já Antonio Alves Rodrigues, o terceiro detido, disse que um policial colocou uma arma em sua boca e ameaçou dispará-la. Ele também acusou João de Deus de traficar cocaína e afirmou que os dois trabalharam juntos por mais de seis anos. Sua prisão era uma espécie de acerto de contas.

Diante dessas denúncias, o juiz pediu ao Ministério Público a instauração de um inquérito. O poder e a influência de João de Deus, no entanto, levaram as investigações de abuso de autoridade, tortura e tráfico de drogas ao mesmo lugar onde foram parar as antigas denúncias de abuso sexual de mulheres — na gaveta. Depois de mais de oito anos de “investigação”, o caso foi encerrado porque os crimes prescreveram. Nesse tempo, a polícia nem sequer ouviu as vítimas. “Embora contenham os autos mais de 242 páginas, poucas diligências foram realizadas com o fito de apurar, de forma efetiva e escorreita, os crimes narrados”, registrou o Ministério Público. Até hoje, portanto, não se sabe se João de Deus era culpado ou inocente. O médium era mais que um delegado. Há relatos de que fazia pagamentos aos policiais goianos, muitos incorporados à sua segurança pessoal, e também financiava a manutenção da delegacia.

O processo que reúne todas essas acusações foi localizado por VEJA no arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Nele, há relatos e documentos que mostram o tamanho da influência de João de Deus. Em 1985, quando foi preso em flagrante contrabandeando autunita, um mineral radioativo, valioso e raro, João de Deus pediu ajuda ao então deputado federal Amílcar de Queiroz, do Acre. Em depoimento ao Ministério Público, o parlamentar confirmou que foi procurado pelo médium, “tendo em vista a apreensão do minério”, e que mobilizou o seu gabinete na Câmara Federal para atendê-­lo “juridicamente”. Os dois — médium e deputado — se conheceram por intermédio do senador Edison Lobão, ex-ministro de Minas e Energia. É bom lembrar que João de Deus foi preso em flagrante, armado, confessou o crime e revelou que era o financiador dos contrabandistas. Mas esse caso acabou tendo o mesmo destino de tudo — a gaveta.


Os segredos na gaveta

(//VEJA)

O processo: A Justiça determinou que fosse aberta uma investigação para apurar denúncias contra João de Deus feitas por três homens presos acusados de porte de drogas e de praticar furto na casa Dom Inácio de Loyola

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(//VEJA)

Quadrilha: Antonio Alves, um dos três presos, contou em depoimento que ele e João de Deus foram parceiros por seis anos em esquema de tráfico de cocaína, em Abadiânia. Os acusados não apresentaram nenhuma prova do que disseram, mas a polícia também não investigou nada — e o caso foi arquivado

(//VEJA)

Espancamento: Joaquim Olímpio de Oliveira, outro dos presos, acusou João de Deus — então chamado de “João Curador” — de submetê-lo a tortura para forçá-lo a confessar o crime. O médium, segundo ele, se comportava como policial, conduzia o interrogatório e usava uma pistola para intimidar

Publicado em VEJA de 26 de dezembro de 2018, edição nº 2614

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