Exclusivo: ‘Medo não se cria na Anvisa’, diz Barra Torres após ameaças
Em entrevista a VEJA, presidente da agência responsável pela aprovação da vacinação de crianças rebate fala de Bolsonaro
À frente da Anvisa há pouco mais de um ano, o médico carioca Antonio Barra Torres precisa dar conta de regular produtos e serviços que movimentam quase um quarto do PIB brasileiro. Mas na sua gestão, a colossal tarefa, que inclui a aprovação de vacinas, medicamentos e alimentos para uso da população, acabou dominada por questões relativas à pandemia. Barra Torres, 57 anos, especialista em cirurgia cardiovascular, chegou ao cargo de diretor da Agência na quota dos militares aliados e leais ao presidente Jair Bolsonaro — ele é contra-almirante da reserva — e assim se posicionou no início. Aos poucos, adotou uma visão independente, técnica e científica, entrando em rota de colisão com a postura peculiar do governo no combate à Covid-19 e se tornando alvo de ameaças feitas por bolsonaristas, principalmente depois que a Anvisa aprovou a vacinação de crianças de 5 a 11 anos. Nesta entrevista concedida por telefone, Barra Torres, que é faixa preta de karatê, rebate as críticas e garante: “Não tenho medo e vou cumprir minha missão até o fim”.
O presidente Bolsonaro já entrou em rota de colisão com a Anvisa algumas vezes, como faz agora, no caso da liberação da vacina anti-Covid para crianças. Sentiu-se coagido? Nitidamente, a fala dele dá um sentido de responsabilizar os funcionários e servidores, caso haja algum efeito indesejado da vacina. Estamos diante de uma situação inédita. Nunca antes, na história do combate à pandemia, houve essa solicitação com esse direcionamento. Mas se o objetivo era criar pânico, garanto que não foi atingido. Cada vez que encontro com os ótimos especialistas que temos por lá, eles me dizem a mesma coisa: “Medo não se cria na Anvisa.” Não é justo submeter 1 600 brasileiros que dependem do trabalho na agência para sustentar suas famílias a esse tipo de humilhação e intimidação barata e rasteira. Mas vamos continuar a cumprir o nosso papel.
O senhor teme pela sua vida? Recebi treinamento militar. Quem passou por isso encara a sobrevivência de maneira diferente, mas a imensa maioria dos funcionários é civil. Espero que o espírito de corpo da agência, que está sob ataque, se comprove como um espírito forte.
Isso tudo atrapalhou os trabalhos da agência? O impacto foi imediato e muito ruim. O presidente tem uma voz que naturalmente ecoa no Brasil inteiro. Sua fala levou a população a levantar dúvidas e suspeitas em relação às vacinas, o que por si só já é deletério. E uma parcela das pessoas comuns engrossou o coro endossando a fala presidencial, às vezes de forma inapropriada. Recebemos ameaças e agressões por e-mail, houve comentários nas redes sociais de toda natureza. Me vi obrigado então a pedir proteção dos órgãos de investigação e da Polícia Federal tanto para as instalações físicas da Anvisa quanto para diretores e servidores.
Poderia dar exemplos do teor dessas ameaças? Começaram antes da aprovação da vacina para as crianças, dizendo inclusive que quem fosse a favor seria morto. Repetiam o tempo todo que nos perseguiriam e nos humilhariam publicamente, estendendo as provocações a nossas famílias. Depois do discurso do presidente, sentiram-se respaldados, e a avalanche de agressões cresceu de maneira exponencial. Já passam de 150 as manifestações mais violentas. E não acho que isso vai parar, ao contrário. Lamento muito a falta de um posicionamento mais duro do governo. O ministro da Saúde, por exemplo, reiterou que não há problema nenhum em se revelar os nomes dos técnicos envolvidos na decisão. É como se ele fingisse não entender o tom que foi dado a esta frase. Mas aqui ninguém é criança.
Em sua visão, existe algum problema em trazer tais nomes à tona? A Anvisa sempre esteve na ponta, entre os serviços públicos, no quesito da transparência. Estamos há quase dois anos enfrentando a Covid-19, sempre trazendo à luz o resultado das resoluções da diretoria. A aprovação do uso emergencial das vacinas Coronavac e AstraZeneca foi transmitida inclusive pela televisão com os cinco diretores ali presentes. As decisões de nível gerencial, como foi o caso da inclusão dessa faixa etária na bula da vacina da Pfizer, são assinadas pelo gerente geral. Não haveria problema em dizer quem participou da decisão, essa é uma informação simples de se obter, mas até agora, não houve nenhuma solicitação formal à agência para que esses nomes fossem divulgados.
Como o senhor lê então essa atitude: de um lado o presidente diz que quer revelar os nomes, de outro não faz um requerimento oficial? Confesso que, apesar de ter uma razoável formação acadêmica e uma razoável experiência de vida, não consigo entender que benefício isso pode trazer para quem quer que seja. A Agência reguladora tem, por lei, o dever de receber as solicitações dos laboratórios e realizar a análise. Se não proceder dessa forma, pode sofrer ações judiciais. É importante frisar que o fato de a vacina ser liberada pela Anvisa para imunização de crianças não obriga a sua aplicação. O Ministério da Saúde decide se incorpora, ou não, esse produto ao Programa Nacional de Imunização. Considero tudo isso irrazoável e ilógico. Se o governo não estiver considerando essa possibilidade bastaria vir a público e dizer: “Não teremos vacinas para crianças no Brasil, é uma decisão nossa”.
A associação de servidores da Anvisa classificou a fala do presidente como um “ato fascista”. O senhor concorda? Depois de dois anos tratando da pandemia, tendo trabalhado com quatro ministros da Saúde, já sou conhecido por não entrar nessas polêmicas. O objetivo é resguardar acima de tudo a credibilidade da Anvisa. A autoridade máxima sanitária brasileira precisa manter distância da política.
O presidente da República também já afirmou que as vacinas contra a Covid não têm registro definitivo e que estão relacionadas a um aumento da transmissão da AIDS. Qual sua opinião sobre essas declarações? Ninguém que se vacina se torna mais suscetível a AIDS. Esta é uma declaração desprovida de qualquer fundamento científico. A AIDS é uma síndrome já conhecida pela ciência e o Brasil virou, inclusive, referência mundial no tratamento da doença. E, só para esclarecer, a vacina da Pfizer possui, sim, o registro definitivo, que é a titulação máxima do medicamento ou do imunobiológico em qualquer agência reguladora no mundo todo. O procedimento analítico para permitir a vacinação das crianças, aliás, foi apenas de alteração de bula, já que, inicialmente, não havia previsão para a faixa etária dos 5 aos 11 anos. Agora há.
O que garante que a vacinação desta faixa etária é segura? Nos mais de 4 000 casos de vacinados apresentados pela Pfizer em seu dossiê, não houve ocorrências adversas graves. Nos Estados Unidos, foram aplicadas mais de cinco milhões de doses para crianças e houve apenas um único caso que motivou hospitalização, com poucos dias de internação, em que a criança ficou em observação. É importante lembrar que todo processo de análise se baseia na avaliação do risco versus o benefício. Qualquer medicamento ou imunobiológico pode induzir uma reação alérgica, porém o benefício supera qualquer risco. Não custa lembrar que, embora os números sejam baixos, mais crianças no Brasil morrem hoje por Covid-19 do que a soma de todas as outras doenças preveníveis com vacina.
O senhor já tinha sofrido pressão outras vezes, como no episódio da tentativa de alteração da bula da cloroquina. Como aconteceu? É uma questão pontual que já abordei na CPI. Tratou-se de uma reunião de enfrentamento da pandemia, que contou com a presença de uma pessoa conhecida no meio médico, mas que não integra o governo. Ela perguntou sobre a possibilidade de se alterar a bula da hidroxicloroquina e da cloroquina, que são medicamentos para outro fim, que não o tratamento da Covid-19. Eu disse: “isso não é permitido”. Somente quem pode solicitar mudança na bula é o fabricante, que precisa antes protocolar os dossiês na agência reguladora e sustentar a conclusão de que o texto pode ser modificado. Não depende da vontade de ninguém. Fiz essa fala de maneira incisiva e enfática e esse assunto não prosperou.
Em algum momento o senhor recebeu algum tipo de pedido mais direto do governo em relação à homologação de vacinas ou de outros medicamentos? Não, nunca houve essa tentativa, da parte de quem quer que seja. Eu entendo que as pessoas se tornam conhecidas pelas suas formas de agir. Sempre deixo muito claro pelas minhas próprias manifestações o meu jeito de trabalhar e isso desestimula qualquer tipo de abordagem nesse sentido.
O senhor pensou em deixar a presidência da Anvisa, em virtude desses ataques reiterados? Não. Fui sabatinado e tive o nome aprovado pelo Senado em duas ocasiões, uma para ser diretor da agência, outra para ser diretor presidente. Pretendo cumprir meu mandato até 2024, quando ele termina. Até lá, espero que consigamos recuperar um tom de normalidade.
Como está a sua relação com o presidente Bolsonaro? O presidente é muito autêntico, demonstra nitidamente o que pensa e não esconde suas emoções. Algumas falas são tomadas por forte emoção. Eu sou muito mais racional, acredito que as ações técnicas estão pautadas no cérebro e não no coração. Como meu cargo é técnico, mantenho essa postura. Entendo que a relação pessoal, de amizade entre o presidente da Anvisa e o Presidente da República não precisa sequer existir. Na medida em que existe, asseguro que, diretamente comigo, Jair Bolsonaro sempre atuou de maneira cordata, urbana e educada. Publicamente, prefiro não fazer juízo de valor, mas ele demonstra posicionamentos que eu não defendo quanto ao uso de máscaras e aglomerações.
Mas o senhor chegou a participar de um ato de apoio ao presidente da República, no início da pandemia, quando houve aglomerações, sem o uso de máscara. Se arrependeu? Estava terminando uma conversa com o presidente no Palácio do Planalto, quando ele se aproximou de manifestantes. Não carreguei faixa, megafone, tampouco estava vestido de verde e amarelo. Me arrependo de não ter pensado, naquele momento, na associação com o meu cargo. Se tivesse refletido, teria terminado o assunto no próprio gabinete do presidente. Nunca me posicionei contra o Congresso Nacional, o STF, ou qualquer outro órgão federal, municipal ou estadual. É importante pontuar, porém, que naquela época não havia vacinas e o uso de máscaras ainda era discutido.
Um estudo publicado na revista Nature mostrou que a perseguição aos cientistas que combatem a Covid-19 ocorre em todo o mundo. Como o senhor vê esse fenômeno? Como os países têm diferentes realidades, há nuances nessa perseguição, nesse retrocesso. No Brasil, as eleições presidenciais do ano que vem contaminaram a abordagem científica desde o primeiro momento. Isso tem sido muito ruim e penso que ficará pior. Mas sob um aspecto mais global, acredito que há uma influência muito grande das redes sociais que não havia em pandemias anteriores. Hoje, qualquer cidadão pode inventar um conceito, dar a ele um arremedo de credibilidade e torná-lo público. Alguém vai acreditar nessa mensagem que circula livremente. É um mal da globalização, mas vamos ter de conviver com isso.
As discussões em torno das vacinas giram muito em torno da liberdade individual em oposição ao bem coletivo. Como o senhor enxerga essa questão? Ninguém pode ser obrigado a injetar qualquer substância em seu corpo contra sua vontade, isso é um princípio fundamental. Acredito que temos de buscar o convencimento das pessoas por meio de informações sólidas, com base científica. Defendo que haja campanhas para levar informação à população, mas no caso da Covid-19, as elas têm sido tímidas, pouco frequentes e aquém de todo o poder de difusão dos meios de comunicação brasileiros. Mesmo assim, a tradição vacinal do país prevaleceu e a adesão tem sido muito grande, estamos com 75% da população com primeira dose, 65% com segunda dose e certamente iremos nos aproximar da imunização plena. Nessa briga entre o direito individual e o coletivo, é possível atender aos dois lados. Se a escolha de quem não quis se vacinar se torna um risco para a coletividade, é preciso encontrar mecanismos intermediários.
O senhor se refere ao passaporte da vacina? Preferimos o termo certificado de vacinação. A agência já se manifestou favoravelmente ao certificado para as pessoas que pretendem ingressar no país. Precisamos proteger a consistência da imunização no território nacional. Quanto às decisões internas, isso cabe aos gestores municipais e estaduais e a Anvisa não atua nesse sentido.
Qual cenário o senhor traça para um futuro breve? Teremos de nos acostumar com novos ciclos de vacinação em virtude das mutações sofridas pelo vírus? Esse discurso de que a pandemia acabou é vazio, basta olhar o que está acontecendo na Europa, com o avanço da variante Omicron. Estudos iniciais comprovam a capacidade das vacinas atuais de combaterem as novas cepas. Mas para termos segurança, será necessário um tempo maior de observação. Vamos analisar se ela é, de fato, mais branda, se pode levar a sequelas no futuro, e se será necessário fazer ajustes nos imunizantes atuais. Também temos vacinas em desenvolvimento no território nacional que estão estudando novas possibilidades.
Produzir vacinas se tornou uma questão de soberania nacional? Seria um pouco exagerado dizer que precisamos produzir 100% das vacinas aplicadas no Brasil. Agora é importante produzirmos Insumos Farmacêuticos Ativos, os chamados IFA’s, porque eles abrem um leque para fabricação de novos produtos. Os países que tiverem condições de desenvolver a sua indústria farmacêutica de base estarão melhor preparados para o enfrentamento de situações como essa. O Brasil já tem vantagem de contar com a Fiocruz e o Butantan, que são duas grandes colunas sobre as quais se apoia a ciência brasileira no campo dos imunobiológicos, mas essa questão do IFA merece melhor atenção.
Como o senhor, um almirante da reserva, avalia a presença significativa de integrantes das Forças Armadas no governo atualmente? Servi durante 32 anos a Marinha do Brasil, que é um órgão de estado e agora estou na Anvisa que também cumpre essa função. Militares têm diversas capacitações que podem servir ao país. Eu sou médico, cirurgião vascular, já apresentei trabalhos científicos dentro e fora do Brasil. Ao contrário de outros militares, não atuo nos órgãos que estão mais ligados às decisões do governo e fico muito feliz com isso.