Estratégica para ampliar transporte de soja, Ferrogrão é alvo de polêmica
Impasse sobre o projeto de uma ferrovia nas regiões Centro-Oeste e Norte envolve a União, estado, ambientalistas e indígenas
Em um país marcado pela precariedade de sua infraestrutura de transportes, a construção de uma ferrovia estratégica nas regiões Centro-Oeste e Norte para escoamento da soja seria motivo de comemoração. Ao contrário disso, a iniciativa acabou desencadeando uma polêmica envolvendo a União, a iniciativa privada, políticos locais, indígenas e ambientalistas. Com 933 quilômetros, a Ferrogrão vai ligar Sinop (MT) ao Porto de Miritituba (PA) e poderá transportar 42 milhões de toneladas do grão — um terço da produção nacional. Tocado pelo Ministério da Infraestrutura, o projeto prevê investimento de 25 bilhões de reais ao longo dos 69 anos de concessão. “Dos 12 000 quilômetros de ferrovias, 80% são para minério de ferro. O agronegócio tem uma fatia de 15%. É um projeto absolutamente necessário”, diz Luis Baldez, presidente executivo da Agência Nacional dos Usuários dos Transportes de Carga.
Embora estratégica, a iniciativa criou uma celeuma em Mato Grosso envolvendo políticos e bilionários interesses privados. Em julho, o governador Mauro Mendes (DEM) autorizou a construção de uma espécie de ferrovia concorrente, que vai de Lucas do Rio Verde, na região de onde partirá a Ferrogrão, até Rondonópolis, onde se conectará ao trecho da Ferrovia Norte-Sul que é operado pela Rumo, empresa de logística da Cosan, e chegará ao estado de São Paulo e ao Porto de Santos. A companhia planeja investir 12 bilhões de reais na extensão e concluí-la em sete anos — a Ferrogrão só operaria a partir de 2030. A Rumo, que convenceu os políticos de Mato Grosso ao ceder à reivindicação de levar o traçado a Cuiabá, monopoliza o transporte de grãos na região e tem interesse em estender a sua malha para o Norte do país, o que afeta diretamente o projeto da Ferrogrão.
Publicamente, ninguém diz que uma ferrovia atrapalha a outra, mas nos bastidores o clima é outro. A Rumo, com a pretensão de avançar para o Norte, diminui o interesse privado no leilão da Ferrogrão, previsto para outubro. O ministro Tarcísio de Freitas, que ficou incomodado, conseguiu do presidente Jair Bolsonaro uma medida provisória que cria um marco legal para ferrovias e concentra na União o poder de autorizar investimentos e impor regras a projetos estaduais. “Precisamos regular uma série de iniciativas de estados que aprovaram leis de autorizações nos últimos meses e estão em vias de contratar investimentos que precisam de segurança jurídica e, o mais importante, padronização com a política nacional”, afirma. Bolsonaro também criticou. “Quem investe nessa área está feliz conosco, mas, se alguém quiser atravessar, atravesse, não vamos impedir, nem temos poderes para isso. Mas a responsabilidade passa a ser exclusiva do governador”, afirmou o presidente a uma rádio local. Na terça 21, ao falar na ONU, ele propagandeou o fato de a MP, editada em 30 de agosto, já ter viabilizado catorze projetos. Para políticos locais, o incômodo federal não será suficiente para tirar dos trilhos o projeto estadual. “Não dava para esperar, uma concessão demora muito tempo, e o governador fez isso dentro da prerrogativa dele”, diz o senador Jayme Campos (DEM-MT).
Não bastasse a queda de braço política, a Ferrogrão desperta a oposição de ambientalistas e foi suspensa em março pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF. “O projeto só pode ser comparado a catástrofes humanitárias e ambientais como a Transamazônica e a Usina de Belo Monte”, exagerou a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil em carta a órgãos internacionais. A União garante que a obra será sustentável e vai reduzir o tráfego de caminhões na BR-163. Considerando-se as dificuldades de escoamento de mercadorias, é lamentável que projetos capazes de resolver esses gargalos estejam se trombando nos trilhos de uma disputa empresarial e política.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2021, edição nº 2758