O filósofo e historiador israelense Yuval Noah Harari, de 43 anos, é especialista em trazer ao alcance do cidadão comum as lições que a humanidade pode extrair da história — não só para entender o presente, mas para iluminar seu futuro. Com turnê pelo Brasil marcada para novembro, o autor dos best-sellers Homo Deus e 21 Lições para o Século 21, editados no país pela Companhia das Letras, fala nesta entrevista ao editor Marcelo Marthe sobre a escalada do obscurantismo, a tentativa de censura a um gibi LGBT pelo prefeito carioca Marcelo Crivella e os desafios que a evolução da tecnologia trará para o progresso humano.
Dos Estados Unidos ao Brasil, há uma ascensão de movimentos que negam os fatos e a ciência. O obscurantismo vai das teorias conspiratórias sobre as vacinas ao ataque aos direitos civis, passando pela crença no terraplanismo. O que explica a revolta contra a razão? A ciência está sob ataque por diversos motivos. Primeiro, porque as pessoas menosprezam as enormes conquistas que ela trouxe. Sem a ciência moderna, pelo menos um terço das pessoas que estão lendo esta entrevista teria morrido na infância de desnutrição ou de outras doenças banais hoje. Elas estão vivas graças a descobertas científicas como as vacinas, os antibióticos e as vitaminas sintéticas. As pessoas se esqueceram de como as coisas eram ruins em épocas passadas, e então deixaram de dar valor a essas conquistas. Um segundo fator é que os líderes populistas estão em alta e eles são inimigos contumazes da ciência. Os populistas buscam ampliar seu poder incitando o ódio contra imigrantes e minorias, e rotulando de traidores os que se opõem a eles. Ao chegarem ao poder, têm como foco destruir todos os contrapesos que limitam a imposição de suas vontades, atacando a imprensa, as instituições e as universidades. A ciência é vista como uma ameaça pelos populistas porque ela expõe verdades que vão contra seus comandos. É por isso que esses líderes encorajam ataques contra ela.
Como se pode combater o obscurantismo? Não há um caminho fácil para lidar com o problema. Precisamos ser incansáveis no empenho de lembrar às pessoas que as metodologias científicas são o melhor guia rumo à verdade, e devemos rejeitar com todas as nossas forças que as visões políticas e os preconceitos religiosos se sobreponham aos fatos trazidos à luz pela ciência. Por exemplo: eu soube que o prefeito do Rio de Janeiro tentou recentemente banir um gibi que mostra um casal gay se beijando, sob a alegação de que sua leitura seria prejudicial às crianças. As intenções do prefeito podem ter sido boas, mas ele deveria antes ter consultado a relevante literatura científica produzida por psicólogos e biólogos sobre o assunto. Numerosos estudos científicos demonstram que a exposição a informações sobre a realidade LGBT na verdade beneficia as crianças, enquanto sonegar tal conhecimento acaba lhes fazendo mal.
De que forma isso acontece? Talvez o prefeito não saiba, mas há milhares de adolescentes gays no Rio. As pesquisas científicas mostram que, em muitos casos, a orientação sexual de uma pessoa é determinada ainda no começo da infância, por uma combinação de causas genéticas e ambientais. Quando impedidos de ver imagens de relacionamentos gays, esses jovens crescem sem modelos com os quais possam se identificar. Eles se sentem sozinhos no mundo, e isso causa imenso transtorno psicológico, um dos motivos de as taxas de suicídio entre adolescentes gays serem muito maiores do que as dos heterossexuais. Espero que o prefeito do Rio possa se familiarizar com esses estudos científicos, para que se compadeça de tantas crianças cariocas, e passe a encorajar a literatura simpática aos gays, em vez de querer proibi-la.
Mas vozes conservadoras no Brasil sustentam que essas obras propagam o que chamam de “ideologia de gênero”, que teria a intenção conspiratória de transformar as crianças em gays. Essa ideia faz sentido? Não há evidência científica de que ver a imagem de um casal gay se beijando prejudique as crianças heterossexuais de qualquer maneira. Com absoluta certeza, isso não seria capaz de transformá-las em gays. Não se muda a orientação sexual das pessoas simplesmente permitindo que elas vejam certo tipo de conteúdo. Convenhamos: as crianças gays crescem cercadas por incontáveis imagens de casais heterossexuais — nem por isso mudam sua orientação. É razoável pensar que ser gay seja tão tentador que a exposição a uma única imagem possa transformar um garoto hétero em homossexual, enquanto milhões de imagens de casais héteros não têm o poder de fazer o contrário com um garoto gay?
Historicamente, a humanidade registrou períodos em que a razão e o progresso deram lugar às trevas e à ignorância. É ilusão pensar que o ser humano evolui sempre rumo à razão? Não existe uma lei capaz de garantir que o processo histórico leve sempre ao progresso. A revolução da agricultura, por exemplo, produziu grandes avanços na vida de reis e aristocratas, mas, a princípio, a vida das pessoas em geral piorou. Os primeiros agricultores tinham de trabalhar mais duro que seus antepassados caçadores-coletores, comiam pior do que eles e sofriam de mais doenças infecciosas, com a maior iniquidade social e repressão política. Para a maioria das pessoas, a invenção da agricultura não foi um momento que trouxe progresso. Da mesma forma, nas próximas décadas nós desenvolveremos novas tecnologias poderosas, como a inteligência artificial. Mas, se não formos cuidadosos, essa força poderá beneficiar somente uma pequena elite, em detrimento da maioria das pessoas. A inteligência artificial deverá ceifar o emprego de centenas de milhões e dar origem a uma nova “classe dos inúteis”. Muita gente provavelmente perderá sua utilidade econômica e sua força política. Ao mesmo tempo, inéditas ferramentas de vigilância poderão nos levar a uma era de ditaduras digitais, em que os governos monitorarão a todos o tempo todo. Esses regimes poderão ser piores que os da Alemanha nazista ou da União Soviética comunista.
Suas previsões não são exageradamente pessimistas? Isso não é uma profecia. É só uma possibilidade. Ainda podemos evitar que o pior ocorra. Para que isso seja possível, precisamos nos conscientizar de que o progresso real nunca ocorre por si próprio. A mera invenção de tecnologias não é suficiente para melhorar a vida. Toda inovação tecnológica pode ser usada para diferentes propósitos — alguns bons, outros ruins. Precisamos garantir que seja empregada em benefício de toda a humanidade, e não só de poucos.
Publicado em VEJA de 18 de setembro de 2019, edição nº 2652