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Entre o vírus e a bala: nas favelas, insegurança dentro e fora de casa

Nas comunidades do Rio, ações policiais desordenadas têm ceifado a vida até de crianças. Sem a presença fixa do Estado nesses lugares, tal sina não mudará

Por Jana Sampaio, Sofia Cerqueira Atualizado em 5 jun 2020, 13h21 - Publicado em 5 jun 2020, 06h00

Disciplinada, a servente aposentada Vera Lúcia Silva, 65 anos, está em quarentena desde março para se proteger do novo coronavírus. O máximo que faz é tomar um sol na calçada, sempre de máscara. Apesar de a pandemia assombrar a ela e aos vizinhos, um medo maior se impõe: o de morrer alvejada por uma bala, uma vez que na área em que mora, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, a violência não dá trégua. Uma marca de tiro na fachada junto ao varal de roupas expõe a vulnerabilidade que ela sente na pele. Vera Lúcia vive no conjunto de favelas onde, há três semanas, João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, foi abatido por tiros de fuzil disparados por policiais em meio a uma operação enquanto brincava com os primos. O caso ganhou projeção nacional pela surreal situação de estar o menino em casa, supostamente protegido, e ainda ter tentado se salvar. Naquela área da cidade, assim como em outros pontos de alta pobreza e baixa inserção do poder público, não há garantia de paz nem dentro do próprio quarto. “Com esse vírus e com tanta bala por aí, não me sinto segura nem na rua nem em casa. Onde será menos arriscado ficar?”, indaga a aposentada, ao tratar de seu xadrez diário.

Em grande parte das metrópoles mundo afora, o vírus teve o efeito de esvaziar as ruas e, como consequência, a criminalidade diminuiu de forma consistente, assim como a sensação de segurança se elevou proporcionalmente. No Rio vem sendo diferente. Apesar de alguns indicadores, como homicídio e roubo de cargas, terem recuado, os tiroteios seguem a toda. A explicação, em boa medida, reside na opção do Estado de intensificar as operações policiais. Elas cresceram 28% em abril. Poderia até ser positivo, não fosse o fato de terem deixado um rastro de 177 mortos, alguns deles comprovadamente cidadãos de bem, como João Pedro. Em quase duas décadas, a ação da polícia não produzia um abril tão sangrento na cidade. O número de mortos nessas circunstâncias disparou 43% em relação a 2019, e a curva segue ascendente como a da pandemia, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP).

Na mesma semana em que João Pedro teve a vida brutalmente abreviada, outros dois jovens foram vítimas da fuzilaria da polícia fluminense: Iago Gonzaga, 21 anos, não resistiu; Bianca Oliveira, de 22, conseguiu sobreviver mesmo após ser ferida com uma bala na cabeça. Ela também estava em casa, dormindo. A reportagem de VEJA visitou a favela onde morava Iago, em Acari, na Zona Norte da cidade. Ali reside Eliana Morais, 48 anos, que, como tantos vizinhos, ficou desempregada na pandemia. Embora reclusa, ela não está em paz e explica sua apreensão apontando para um buraco de tiro em uma das paredes. “Os policiais deveriam nos proteger, mas acabam trazendo insegurança. Durante o tiroteio com os bandidos, é um salve-se quem puder”, descreve ela. O clima — dentro e fora de casa — é de enorme tensão. Foi possível avistar traficantes fortemente armados, prontos para o combate.

BASTA - A população em protesto: a cultura da resposta a tiros já não resolve (Pilar Olivares/Reuters)

Por décadas, o Rio vem sendo palco de uma política que aposta no confronto a bala entre as forças de segurança e a bandidagem — lógica que o governador Wilson Witzel (PSC) resumiu como o “tiro na cabecinha”. Houve uma brecha com a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, uma tentativa de coibir os criminosos ocupando seu território e praticando a vigilância em proximidade com a população. Estava indo muito bem, mas a expansão desenfreada da ideia com fins políticos fez o projeto naufragar — e a velha cultura voltou com tudo. No ano passado, o governo suspendeu uma gratificação, em vigor desde 2011, concedida aos PMs que reduzissem o número de mortes em ações. “Operações violentas da polícia não deixam a vida do cidadão mais segura”, afirma a socióloga Julita Lemgruber, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes. Ela acrescenta: “A opção por essa estratégia em meio à pandemia, momento em que há alta concentração de gente nos morros, é ainda mais escandalosa”. A necessidade de poder público nesses bolsões de pobreza, onde vivem hoje 1,3 milhão de pessoas, é inquestionável. Mas há um consenso entre estudiosos de que a solução para conter o crime passa muito mais por treinamento, presença permanente e inteligência policial do que pela força bruta. “A cultura do enfrentamento precisa ser superada”, enfatiza Paulo Storani, antropólogo e ex-capitão do Bope, a tropa de elite do Rio.

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Os frequentes tiroteios andam espantando ações sociais, como a distribuição de cestas básicas, justamente nesta hora em que o desemprego atinge em cheio a população mais vulnerável. O governador Witzel orientou a polícia a ampliar o diálogo com lideranças locais para evitar que as operações coincidam com “serviços comunitários” — e mais não disse. Mãe de seis filhos, a auxiliar de serviços gerais Cláudia Cruz de Oliveira, 50 anos, moradora do Complexo do Salgueiro, onde João Pedro vivia, expõe sua aflição: “Não fico tranquila quando os meninos estão fora de casa, e a preocupação me acompanha quando eles chegam”. Mais de setenta marcas de tiros nas paredes dão a dimensão do que aconteceu naquele 18 de maio, quando João Pedro foi executado. A polícia justifica o horror dizendo que, munida de informações de que bandidos se escondiam no quintal, precisava atacar. “Esperava no mínimo um pedido oficial de desculpas por terem tirado a vida do meu filho”, desabafa a VEJA o pai, Neilton Pinto, 40 anos, que segue amedrontado no que sobrou da casa onde o menino morreu. Infelizmente, essa trágica história, cedo ou tarde, vai se repetir.

Publicado em VEJA de 10 de junho de 2020, edição nº 2690

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