Embaixadora conta como sobreviveu a transplante de fígado após contrair dengue
'Ganhei uma alma brasileira', diz Stephanie Al-Qaq, 49

Quando soube que seria embaixadora do Reino Unido no Brasil, no fim de 2022, comemorei. Era a concretização de meus planos, uma vez que eu já havia trabalhado no país na condição de diplomata, entre 2007 e 2012, e finquei raízes. Meus dois filhos mais velhos nasceram aqui e até brincam que são brasileiros. Tenho um carinho todo especial pelo país. Nunca imaginaria, porém, que justamente esta nova e tão desejada passagem iria se tornar uma dura batalha pela vida. Tudo começou no fim de 2024, quando contraí dengue. Apesar de conhecer os perigos das doenças tropicais e tomar as devidas precauções — sempre uso repelente, por exemplo —, acabei sendo picada assim que voltei para Brasília, logo após a cúpula do G20. Foi tão difícil que só agora me sinto bem para falar sobre o que enfrentei.
No início, pensei que estava apenas cansada. Mas o sintoma persistia, e achei que algo mais grave poderia estar acontecendo. Um dia após o Natal, fui ao hospital, onde rapidamente me diagnosticaram, depois de um exame de sangue. Não demorou também para perceberem que eu passei a sofrer uma hepatite fulminante causada pela doença. A dengue estava matando meu fígado. É um quadro muito raro, que atinge menos de 1% dos pacientes e apresenta alto grau de letalidade — metade dos que sofrem disso não resiste. Me surpreendi quando os médicos disseram que iria precisar de um transplante. Embora encontrar um doador compatível não seja tarefa fácil, coloquei na cabeça que por nada desistiria. O meu desafio passou então a ser sobreviver até que pudesse receber um novo fígado. Felizmente, estava em um país que, como no Reino Unido, conta com sistema universal e gratuito de saúde.
A colaboração de médicos brasileiros com britânicos foi essencial para chegarem à conclusão de que poderia ser bom realizar uma hemodiálise com terapia de plaquetas, tratamento inovador desenvolvido por indianos. Recebi a transfusão ao mesmo tempo em que meu sangue era filtrado. Sentia o corpo queimar de dentro para fora. Por mais de duas horas, não conseguia nem falar. Um enfermeiro era quem me trazia alento, repetindo que estava tudo bem, que era para seguir em frente. A dor é horrível, mas o pior é o medo. Eu passava boa parte do tempo inconsciente. Não era capaz de ver as pessoas ao meu redor, mas conseguia ouvi-las. Sempre procurava pela voz do meu marido ou pelo cheiro de uma enfermeira que usava um perfume característico. Reconhecer essas coisas me acalmava. No quinto dia de internação, tive a sensação de que estava abandonando meu corpo. “Não estou aguentando”, disse. Aí meu marido pediu: “Espera só mais um dia”.
O tempo estava se esvaindo, já que o fígado é que elimina as toxinas. Se não funciona, elas se tornam fatais. Um primeiro órgão já havia sido dispensado. Sou pequena, então necessitava de um menorzinho e saudável. Por lei, o processo de seleção é ultrarrigoroso e prioriza quem tem o quadro mais grave. Era o meu caso. Quando tudo parecia se complicar, enfim apareceu um doador compatível. A cirurgia durou onze horas e foi feita por dois médicos brasileiros e outro britânico. Por três dias, fiquei entre a vida e a morte. Muitos que passam por essa experiência dizem que tudo se torna escuro, só que eu sentia a presença de gente à minha volta. Pensava: “Não vou sair daqui morta”. Quando acordei, perguntei a meu marido se queria renovar os votos. Hoje levo uma vida ainda com restrições — tomo um monte de remédios e os que convivem comigo usam máscara. Dizem que vou viver menos, mas sou boa de quebrar protocolos. Minha família quis permanecer no Brasil. Há quem acredite que o fígado representa a alma. Posso dizer que ganhei uma alma brasileira.
Stephanie Al-Qaq em depoimento a Ricardo Ferraz
Publicado em VEJA de 2 de maio de 2025, edição nº 2942