Censo revela força das mulheres para liderar a retomada produtiva do país
Dados recém-divulgados lançam luz sobre um número surpreendente: em um Brasil que envelhece, elas já formam uma maioria significativa
Ao longo do último meio século, as placas tectônicas da demografia foram chacoalhadas com tamanho vigor que, de país jovem, o Brasil passou a ser uma nação envelhecida, com todas as consequências que isso traz. Do ponto de vista individual, a possibilidade de viver mais e melhor descortina horizontes antes impensáveis para uma população grisalha que vai cruzando barreiras etárias sem perder a juventude. Quando se olha para a economia, porém, a radical mexida na composição da sociedade impõe o desafio gigantesco de seguir movendo as engrenagens com braços cada vez mais escassos, já que as maternidades registram menos bebês — fenômeno que acompanha o caminhar da humanidade noutras partes do planeta. O resultado, revelam dados do Censo recém-divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é que aquele período áureo, no qual há mais gente em idade produtiva do que crianças e velhos, está se encerrando em mais ou menos uma década — e é preciso acelerar o passo para aproveitar esta fresta que, se bem usada, pode impulsionar o crescimento.
O tão aguardado levantamento lança luz sobre um número surpreendente em meio a esse contingente potencialmente produtivo: as mulheres formam uma maioria significativa. De acordo com o IBGE, na faixa dos 15 aos 59 anos, há 8,5 milhões a mais de mentes femininas do que masculinas, o que lhes confere um papel de altas responsabilidades. Neste cenário em que a janela de oportunidades da demografia vai se fechando, cabe a elas liderar a virada de página numa economia que terá de aprender a fazer mais com menos pessoas. Para que funcione, esse decisivo batalhão feminino precisa encontrar condições de abraçar a carreira junto à maternidade e à rotina doméstica. “As nações mais ricas extraíram o máximo do momento demográfico favorável para saltar de patamar, enquanto o Brasil envelheceu antes de mudar de nível”, observa o demógrafo José Eustáquio Diniz, que ressalta a urgência de mirar as mulheres. “Precisamos dar especial atenção a elas, para que possam ser inseridas no mercado”, diz.
Atualmente, apenas 50% trabalham fora, um contraste em relação à ala masculina — 70% deles estão na ativa. Ao analisar as razões para a desocupação de um e de outro lado, se chega a um ponto-chave: a maior parte dos homens procurou, mas não conseguiu trabalho, enquanto muitas mulheres não deram conta de equilibrar a carreira com tantos afazeres envolvendo casa e filhos, funções ainda culturalmente atribuídas a elas no Brasil. O IBGE enfatiza que esse atribulado cotidiano absorve 73% mais tempo da fatia feminina da população na comparação com a dos homens. “Mesmo com o avanço das pautas feministas, mulheres, sobretudo as que são mães, vivem até hoje sobrecarregadas”, resume a historiadora Aline Beatriz Coutinho, da Agência Nacional de História.
Certamente a maior adesão feminina ao mercado depende de uma sacolejada em antigos pilares sobre os quais se ergue a sociedade brasileira, o que exige uma mudança na velha mentalidade. “As que decidem pular obstáculos e seguir com a carreira são questionadas em entrevistas de emprego se têm filhos pequenos e como vão lidar com tanta coisa”, lembra a historiadora Aline. Várias delas acabam abatidas pelos excessos da jornada dupla ou tripla, e desistem. Há duas décadas, com o segundo filho ainda bebê, a farmacêutica Aline Santos, 46 anos, viu-se espremida entre profissão e maternidade. Ficou com a segunda opção. “No ambiente de trabalho, é como se não tivéssemos filhos e, em casa, a demanda é para que sejamos mães presentes e disponíveis, como se não trabalhássemos”, resume ela, que até tentou voltar ao mercado, mas eis que esbarrou em outra novidade demográfica: a mãe, já mais velha, ficou doente, e Aline, como tantas brasileiras, passou a cuidar dela.
A experiência internacional pode ajudar a iluminar o caminho do Brasil rumo a um mercado mais inclusivo às mulheres. Nesse campo, os países do Norte europeu, onde até 80% da população feminina trabalha, fornecem boas lições. A Finlândia, pioneira nas questões de igualdade de gênero, oferece uma licença parental, em que também o homem pode pedir afastamento da função para cuidar da prole por certo período. Assim, uma leva relevante de mulheres não só entra como permanece na ativa. Lá e em outros países da Europa, observa-se um empenho em erguer um sistema para que filhos pequenos sejam assistidos quando a mãe não está, multiplicando-se as creches, instaladas inclusive em locais de trabalho. “Aumentar o acolhimento às crianças é política testada e aprovada mundo afora para abrir oportunidades às mulheres e alavancar o desenvolvimento”, afirma Igor Lucena, economista e doutor em relações internacionais.
No mercado de trabalho brasileiro, persiste um fosso entre homens e mulheres. A diferença salarial gira em torno de 20% em prol deles, e apenas 17% dos postos de comando são preenchidos por elas. Uma conhecida forma de combater esse nó, que tanto desestimula aquelas que têm ambição e reconhecem a dureza da trilha rumo ao topo, é dar transparência à folha salarial — algo que grandes empresas estrangeiras já fazem. Em julho, o governo Lula sancionou uma lei de equidade salarial que prevê multa ao patrão que a desrespeitar. A intenção é louvável, mas o problema está justamente na dificuldade de fiscalização, já que os números são muito bem guardados no universo corporativo. “Esse tipo de avanço tem muito mais a ver com uma transformação da própria sociedade do que com qualquer imposição legal”, pondera Lucena.
Um dado que emperra o aproveitamento do bônus demográfico que nos resta é o elevado desemprego e a baixa qualificação das jovens gerações — 20% se enquadram na tal categoria “nem nem” (não estuda nem trabalha). A imersão nas tarefas da casa e a gravidez são dois dos itens elencados por mulheres nessa faixa para se afastar dos livros e não apostar na carreira. “O investimento em educação voltado para esse grupo é vital para fazer a produtividade crescer”, ressalta o demógrafo Ricardo Ojima, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Muito bem formada, a engenheira Stephany Gesser, 32 anos, encara oceanos — ela lidera uma equipe a bordo do navio onde passa metade do mês. “Foi desgastante o percurso até chegar a um cargo alto. Estou sempre tendo que provar minha competência”, desabafa ela, que quando está em terra firme, ao lado do marido, corre para botar tudo em dia. “São tantas obrigações que já tive sintomas de burnout”, conta a engenheira, que por nada desiste. Que ela e milhões de outras tenham condições para capitanear a guinada de que o Brasil precisa.
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2023, edição nº 2867