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Em ritmo recorde, roubo de celular vira questão de segurança nacional

Como funciona a indústria por trás de uma epidemia que mudou o comportamento dos brasileiros

Por Lucas Mathias Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Ludmilla de Lima Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 23 Maio 2025, 16h16 - Publicado em 23 Maio 2025, 06h00

Há uma epidemia no Brasil, a do furto e roubo de celulares. Ela é assustadora, por representar a ponta de um iceberg de violência, a sombra insidiosa a se espalhar em todas as classes sociais. O smartphone, o mais icônico objeto de nosso tempo — sinônimo de avanço tecnológico e praticidade, o mundo em nossas mãos, mas também de exagero no vício das redes sociais — é agora o símbolo de uma imensa dor de cabeça. Em 2023, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, houve mais de 937 000 ocorrências de aparelhos subtraídos de seus proprietários no país, o equivalente a dois por minuto, somados furtos e roubos. Não há, ainda, novos levantamentos estatísticos nacionais, por exigirem tempo de tabulação, mas o crime parece não ceder, infelizmente.

arte celular

Levantamento feito por VEJA, com base em registros policiais, mostra que apenas na cidade de São Paulo, em janeiro deste ano, houve 22 000 episódios, entre roubos e furtos. Se considerados só os roubos, houve crescimento de 28% na comparação com o mesmo mês de 2024. No Rio de Janeiro, foram mais de 4 000, um recorde histórico na cidade para um único período de trinta dias. As autoridades chegaram a celebrar uma pequena redução no país de casos na compilação final de 2023 em relação a 2022, com queda de 10%, mas chega a ser risível apontá-la, até porque na maioria das oportunidades as vítimas deixam de notificar a agressão. “A possibilidade de se tornar a próxima vítima impacta a percepção de todos, em sensação de insegurança”, diz o pesquisador Leonardo Carvalho, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

O risco de ter o celular levado é, enfim, elo de uma engrenagem que as pesquisas de opinião pública medem com acuidade. Sondagem do instituto Genial/Quaest divulgada no início de maio revela que 29% dos entrevistados percebem a violência como o principal problema brasileiro, à frente da saúde e da educação. É muito, e brota a nítida percepção de que o aparelho eletrônico se transformou em chamariz para a bandidagem. A intranquilidade é agravada por casos em que a violência explode de maneira brutal e injustificável, como o assassinato à queima-roupa do ciclista Vitor Medrado, 46 anos, ocorrido em fevereiro. Medrado mexia no celular na calçada do Parque do Povo, em uma das regiões mais nobres da Zona Oeste da capital paulista, quando um ladrão atirou antes mesmo de anunciar o assalto. “Passamos a viver em um limbo de ansiedade e angústia”, diz o irmão, John Medrado, 43 anos, que mora em Belo Horizonte.

MÁFIA - A montanha de aparelhos recuperados pela polícia do Rio de Janeiro: facções organizadas comandam o negócio
MÁFIA - A montanha de aparelhos recuperados pela polícia do Rio de Janeiro: facções organizadas comandam o negócio (Polícia Civil/Divulgação)

Tamanha operação criminosa não teria como prosperar sem uma organização com longos tentáculos, capaz de romper as fronteiras das “quebradas” e de faturar alto em distintas modalidades de ação. Inquéritos policiais deixam clara a ligação das quadrilhas que atuam nas ruas com bandos criminosos de alcance internacional, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV). Eles fornecem apoio e armas aos ladrões, a quem costumam pagar entre 200 e 500 reais por unidade, dependendo do modelo. As diversas fases da Operação Big Mobile, realizada pela polícia paulista e que encontrou mais de 20 000 aparelhos roubados, retrata o modus operandi dos criminosos. Os celulares chegam a mudar de mãos até quatro vezes, entre larápio, receptador, técnico de informática e revendedor, antes de retornarem ao mercado. Em muitos casos, são vendidos como itens legalizados por empresas que os comercializam como seminovos com notas frias, em regiões de comércio nos centros das grandes metrópoles.

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PROTESTO - O choro pela morte do ciclista Medrado, em São Paulo: crueldade
PROTESTO - O choro pela morte do ciclista Medrado, em São Paulo: crueldade (Eduardo Knapp/Folhapress/.)

Outra prática comum é o desmanche do aparelho para abastecer o ramo da manutenção irregular e a montagem de equipamentos apelidados de “frankenstein”, com componentes de diversas origens. Se conseguem quebrar a senha da tela de início, os marginais ainda tentam aplicar golpes financeiros, atrelados a chantagens, expondo dados pessoais — endereço, nome dos pais, entre outros — e ameaçando o usuário de morte caso não forneça a senha bancária ou não faça uma transferência via Pix. Roubos e furtos de celulares se tornaram delito tão disseminado que recentemente policiais do Piauí prenderam no Pará quatro ladrões que atravessavam o país, impunes, atrás de boas oportunidades de negócio. “São grupos que furtam em um estado para revender em outro, dificultando o rastreio”, afirma o delegado Matheus Zanatta, superintendente da Secretaria de Segurança do estado do Piauí.

arte celular

No intrincado roteiro por onde circulam os aparelhos roubados, o mais complexo e lucrativo ponto é o envio de grandes remessas para o exterior. A porta de saída mais comum são os aeroportos, mas as autoridades já se depararam com sofisticados contêineres de navios, capazes de obstruir o sinal de GPS e impedir o rastreamento via satélite. Os destinos, em geral, são países da África, principalmente a Nigéria. A cidade de Lagos se tornou um centro de receptação de aparelhos ilegais vindos de várias partes do mundo. “Nesses lugares o sistema GSMA, uma associação mundial de operadoras capaz de identificar celulares de cinquenta nações diferentes, não funciona”, explica Nilo Pasquali, superintendente da Anatel.

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“BOTARAM ARMA NA CABEÇA DE TODO MUNDO” - A vereadora pelo Rio Monica Benicio (PSOL), viúva de Marielle Franco, assassinada em 2018, estava com três amigos no Rio quando o grupo foi roubado por bandidos, que pararam o carro de aplicativo. Eles saíam de uma festa. “Botaram arma na cabeça de todo mundo, levaram todos os celulares e até o carro do motorista”, diz ela.
“BOTARAM ARMA NA CABEÇA DE TODO MUNDO” – A vereadora pelo Rio Monica Benicio (PSOL), viúva de Marielle Franco, assassinada em 2018, estava com três amigos no Rio quando o grupo foi roubado por bandidos, que pararam o carro de aplicativo. Eles saíam de uma festa. “Botaram arma na cabeça de todo mundo, levaram todos os celulares e até o carro do motorista”, diz ela. (@monicaterezabenicio/Facebook)

Considerando-se o cenário preocupante, o combate mais efetivo a essa epidemia de crime passa pela identificação de possíveis receptadores de celulares surrupiados e a chance de que venham a responder por isso, combinada com a ação conjunta das polícias. “Eu já tinha perdido as esperanças”, diz a auxiliar de enfermagem Ana Carolina Albuquerque, 34 anos, que há um ano e meio foi roubada enquanto caminhava em uma movimentada avenida de Recife por um ladrão em uma bicicleta, o método mais comum. “Fiz o aviso no site do governo de Pernambuco e fiquei surpresa ao saber que meu celular havia sido recuperado durante uma abordagem policial”, relata (leia depoimentos de vítimas ao longo desta reportagem).

A tecnologia é uma aliada poderosa para quebrar o ciclo econômico em torno da atividade criminosa, mas não dá conta do recado se não for acompanhada da ação da polícia, peça crucial para desbaratar as quadrilhas que atuam em um mercado que movimentou inacreditáveis 22,7 bilhões de reais entre julho de 2023 e o mesmo mês do ano passado, segundo os mais recentes cálculos do FBSP. O grande desafio das forças de segurança é cercear a ousadia e a criatividade dos criminosos. Em março, a Polícia Civil do Rio de Janeiro desarticulou uma quadrilha do morro Fallet-Fogueteiro, no centro da cidade, que usava um dispositivo com software capaz de modificar os IMEIs, impedindo o rastreamento e permitindo a reutilização com novos chips. No início de abril, foi preso um suspeito de liderar uma gangue especializada em desbloqueio de aparelhos roubados. O grupo, de atuação na Baixada Fluminense, conseguia trabalhar a distância, por meio de softwares — e, abuso dos abusos, dava oficinas, cobiçadas, em que ensinava técnicas para derrubar restrições eletrônicas dos telefones. “A sofisticação é tanta que já vendem cursos remotos no submundo do crime que ensinam a burlar as barreiras de segurança e a mudar o número de registro”, diz Victor Tuttman, delegado responsável pela investigação.

IRONIA - Sarrubbo: até o chefão da Segurança Pública tem um “celular do ladrão”
IRONIA - Sarrubbo: até o chefão da Segurança Pública tem um “celular do ladrão” (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
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Diante do tamanho do problema, a epidemia de roubos e furtos de celulares virou caso de segurança nacional. O Palácio do Planalto anunciou providências para tentar combater a triste maré, ciente de que a máquina de surrupiar celulares pode representar a perda de milhões de votos na eleição de 2026. “A gente não vai permitir a república de ladrão de celular”, disse o presidente Lula, durante uma recente viagem ao Ceará. O tema se tornou uma das principais prioridades do Ministério da Justiça, sob o comando de Ricardo Lewandowski, que a pedido de Lula deu ordem para que o aplicativo Celular Seguro, que cadastra aparelhos em todo o território nacional, fosse aprimorado. A primeira versão não tinha a contribuição efetiva de todas as operadoras e era pouco conhecida pela população. “Fizemos diversas reuniões com o objetivo de integrar os bancos de dados às polícias civis dos estados”, diz o secretário executivo do ministério, Manoel Carlos de Almeida, sobre as novas medidas, inspiradas no programa mais amplo implantado no Piauí em 2023 e que recuperou 11 000 aparelhos desde sua criação. “Se todo mundo se cadastrar, acabam a comercialização e a receptação no Brasil”, afirma Almeida, com certo exagero de otimismo, porque é improvável que isso ocorra.

MERCADO - Trecho da Rua Santa Ifigênia, em São Paulo: produtos vendidos com notas frias
MERCADO - Trecho da Rua Santa Ifigênia, em São Paulo: produtos vendidos com notas frias (Danilo Verpa/Folhapress/.)

O programa piauiense é o mais bem-sucedido, mas não é o único — ao menos onze estados têm iniciativas semelhantes, embora incapazes de mudar o tom da prosa. A vantagem do aplicativo do governo é criar uma plataforma nacional de registros de celulares utilizando apenas o número de telefone. Em caso de roubo, furto ou perda, é possível interditar o aparelho, bem como o acesso a bancos e órgãos públicos, por meio da opção “bloqueio total”, que inutiliza completamente o IMEI (número de identificação instalado na fábrica), ou “recuperação”, em que as funcionalidades e informações podem ser restauradas se ele voltar para as mãos do dono. Nos aparelhos roubados cadastrados no programa que permanecem ativos, sempre que um novo usuário se logar na rede receberá uma mensagem informando que precisa levar a nota fiscal a uma delegacia para comprovar ser, de fato, o proprietário. Quem ignorar o aviso pode ser investigado por ter o CPF atrelado a um número suspeito. “Até o início de abril, mais de 125 000 alertas de bloqueio foram emitidos pelo Ministério da Justiça”, diz André Leite, diretor de projetos do MJ.

CUIDADO, SEMPRE - Em janeiro, a auxiliar de enfermagem Ana Carolina Albuquerque, 34 anos, não acreditou quando foi informada pela polícia de que o celular roubado há mais de um ano, em Recife, havia sido recuperado, intacto. “Tinha perdido as esperanças, mas agora tomo cuidado o tempo todo quando saio de casa”, diz ela, que passou a evitar tirar o celular da bolsa em local público.
CUIDADO, SEMPRE – Em janeiro, a auxiliar de enfermagem Ana Carolina Albuquerque, 34 anos, não acreditou quando foi informada pela polícia de que o celular roubado há mais de um ano, em Recife, havia sido recuperado, intacto. “Tinha perdido as esperanças, mas agora tomo cuidado o tempo todo quando saio de casa”, diz ela, que passou a evitar tirar o celular da bolsa em local público. (@governope/Instagram)
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No âmbito legislativo, o Ministério da Justiça enviou à Casa Civil um projeto de lei que aumenta em 50% a pena do crime de receptação de artigos eletrônicos, elevando a mínima de três para quatro anos e meio de detenção e a máxima, de oito para até doze. “Não é uma bala de prata, mas é preciso atacar o problema também por esse lado”, diz Mario Sarrub­bo, secretário nacional de Segurança Pública. A exemplo de diversos brasileiros, ele passou a utilizar um celular antigo quando sai à rua. É nota irônica que uma autoridade do topo da pirâmide tenha de lançar mão de recursos como qualquer cidadão, ao usar aparelho de antiga geração, o “celular do ladrão”, sem aplicativos de bancos. O exemplo mostra a que nível chegou o problema. Para o país não virar uma república de ladrões de celulares é preciso muito mais inteligência e eficiência das autoridades. É chamado urgente, pois os bandidos estão ganhando a batalha.

Publicado em VEJA de 23 de maio de 2025, edição nº 2945

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