Ele tentou salvar a mãe no incêndio do Hospital Badim — em vão
Leia o depoimento de Emanuel Ricardo, que estava lá quando o fogo começou
Minha mãe foi internada no Hospital Badim, localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, com uma pneumonia leve. Pela idade avançada, 88 anos, acharam por bem que ela ficasse no CTI enquanto o antibiótico agia. A previsão era permanecer ali por uma semana, só por precaução. Meu irmão dormiu com ela na quarta-feira 11, a primeira noite. No dia seguinte, era a minha vez. Cheguei de manhã, vimos TV, conversamos muito e ela, que não costumava ser boa de boca, comeu o lanche todo. Suplicava: “Filho, deixa eu ir para casa, isto aqui é ruim”. Disse a ela que se acalmasse, que a casa continuava lá, não ia sair do lugar. Tudo estava na santa paz, até que, mais ou menos às 17h15, a luz se apagou. Dez minutos mais tarde, voltou, com a ajuda de um gerador. Foi aí que senti um forte cheiro de gás e diesel. Avisei na enfermaria, mas me tranquilizaram. Disseram que a manutenção já estava no local cuidando do problema. Por um instante, a ansiedade passou. Mas voltou logo.
Depois de meia hora, uma cortina densa de fumaça tomou conta do CTI. O que se via do lado de fora era ainda mais insuportável na parte de dentro. Imediatamente os parentes dos doentes fecharam cada qual a sua divisória, para proteger quem estava acamado. Não adiantou. A fumaça avançava, e o desespero crescia. Era funcionário gritando, gente se abraçando, chorando, um pandemônio. Ninguém conseguia decidir nada. Àquela altura, a defesa civil estava próximo da saída, perto dos leitos do CTI. Os pacientes foram sendo retirados de acordo com a proximidade da porta. Minha mãe foi a última. O engraçado é que nem nessa hora ela perdeu o bom humor. Levantou os olhos, me encarou e brincou: “Está vendo, Ricardo? Agora eu vou para casa”.
Ela tinha dificuldade para respirar. Corri então para buscar uma máscara para minha mãe no posto de enfermagem, porque nem isso haviam nos dado. Peguei a última, coloquei nela e pedi: “Não abra a boca para não entrar fumaça”. As enfermeiras me ajudaram a levá-la para o pessoal da defesa civil, que não permitiu que eu a acompanhasse. Insisti. Expliquei que minha mãe poderia ter um pico de pressão alta. De repente, um bombeiro me empurrou com força para que eu me afastasse. Perguntei por quê. “Sou acompanhante, não bandido”, gritei. Não me deixaram ajudar. Não pude fazer nada.
O diretor do hospital deu entrevista jurando que o hospital tinha plano de evacuação, brigada de incêndio. Não vi nada disso. Só um caos de gente procurando os parentes sem resposta. Recomendaram no hospital que eu desse uma olhada nas calçadas ali perto para ver se localizava minha mãe. Nada. Fiz uma ronda pelos hospitais vizinhos, com os meus irmãos. Em um deles, fomos recepcionados enfim com uma boa notícia. O nome dela constava da lista dos vivos, disseram. Fui atrás de um funcionário para saber se a medicação que ela deveria tomar estava em dia. E ouvi: na verdade, ela não se encontrava lá; fora um mal-entendido. Percorremos outros hospitais, até que, sem notícia, voltamos ao Badim. Era madrugada e me informaram sobre uma lista de mortos. Briguei para ter acesso a ela. E, quando tive, veio o pior: Luzia dos Santos Melo, minha mãe, estava entre os catorze que haviam perdido a vida. Uma morte natural traz dor, mas sendo por negligência é assassinato. Entreguei minha velhinha bem aos bombeiros, e ela se foi assim, asfixiada, ainda cheia de sonhos, com planos de viver muito mais. Vou processar o hospital, mas nada neste mundo apagará a angústia dessa partida tão trágica. Desde a morte de minha mãe, um pensamento não me sai da mente: será que eu poderia ter feito alguma coisa diferente para salvá-la?
Depoimento dado a Bruna Motta
Publicado em VEJA de 25 de setembro de 2019, edição nº 2653