Possibilidade de derrota de Trump preocupa o governo Bolsonaro
A vantagem do democrata Joe Biden na eleição americana acende o sinal de alerta por aqui no presidente, apoiador incondicional do republicano
Um dos mais fiéis seguidores da polêmica cartilha de Donald Trump, não por acaso, Jair Bolsonaro adotou durante a pandemia o mesmo comportamento negacionista (não por acaso também os dois países viraram os campeões mundiais em Covid-19). A diferença é que, nos últimos meses, o americano vem ensaiando um recuo nessa atitude e, sinal dos novos tempos, fez até a concessão de aparecer em público usando máscara. Inegavelmente, tamanha mudança de comportamento tem relação direta com a proximidade das eleições americanas em novembro. O republicano, que antes parecia caminhar para uma vitória tranquila, viu sua aprovação cair drasticamente devido à má condução da crise sanitária que já ceifou por lá a vida de quase 150 000 pessoas. Segundo uma pesquisa divulgada pela CNN, o democrata Joe Biden abriu uma vantagem de 12 pontos em relação a ele.
A postura de Bolsonaro de menosprezar a gravidade da doença não provocou até agora nenhum rombo no casco de seu cacife político (veja reportagem na pág. 28), mas os estragos na popularidade do amigo e ídolo acenderam um sinal de alerta na possibilidade de o Brasil ter sua relação com os Estados Unidos prejudicada. No caso, a bem da verdade, seria necessário dar um cavalo de pau na condução da política externa, considerando o apoio explicitado por mais de uma vez a Trump, como admitiu pela primeira vez o presidente em uma live transmitida no último dia 16. “Se eles não quiserem, paciência”, disse Bolsonaro, ao tratar da necessidade de construir uma ponte em direção a Biden em caso de vitória do Partido Democrata. “O Brasil vai ter de se virar por aqui.”
Avisos de que é bom se preparar para um possível revés vieram até de um membro graduado da ala conservadora da política americana. Em entrevista recente ao jornal O Estado de S. Paulo, John Bolton, ex-conselheiro de Segurança do governo de Donald Trump, aconselhou o Brasil a abrir uma linha de comunicação com os democratas. Bolton era um dos principais interlocutores do Planalto na Casa Branca antes de ser defenestrado por Trump. Esses sinais de alerta já vinham provocando algum movimento diplomático. Nestor Forster, que até hoje não foi confirmado pelo Senado como embaixador brasileiro em Washington, tem conversado com democratas moderados que integram a comissão de relações entre os dois países no Congresso americano.
É ainda uma ação tímida para o tamanho do desafio, mas significativa em um governo em que o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, se recusa a pensar na possibilidade de uma derrota de Trump. Araújo é um dos principais responsáveis pelo alinhamento cego da política externa brasileira à figura do americano. Há poucos dias, os generais palacianos tentaram tratar com Bolsonaro sobre a necessidade de trocar os ministros restantes da área ideológica, entre eles o chanceler. Foram recebidos com impropérios pelo presidente. “Eu não vou trocar ninguém, porra. Já basta o da Educação”, respondeu Bolsonaro, segundo testemunhas. No momento, as maiores preocupações em relação a uma vitória de Biden partem justamente dos militares do governo. Se chegar à Casa Branca, o democrata será pressionado por seu partido a adotar um posicionamento mais firme em relação a questões ambientais, sobretudo no que diz respeito à devastação da Amazônia. A palavra dos Estados Unidos nas reprimendas internacionais que o Brasil já enfrenta seria uma agravante enorme para a crise de imagem do país. Isso implicaria novos atritos com investidores estrangeiros e problemas para a venda de produtos do agronegócio brasileiro no exterior. Biden também terá posições mais contundentes sobre a proteção dos direitos humanos e defenderá o multilateralismo, algo que se choca frontalmente com a posição de Araújo no Itamaraty.
“Mas as relações entre presidentes são só o topo do iceberg”, lembra Thiago de Aragão, consultor da Arko Advice em Washington. Setores de cooperação continuarão funcionando independentemente de quem for eleito, como é o caso dos projetos militares e de quatro acordos que as equipes econômicas de Brasil e Estados Unidos deixaram alinhavados nas áreas de facilitação comercial, boas práticas regulatórias, comércio digital e combate à corrupção. Apesar dessa ressalva, o fato é que a possibilidade de uma derrota de Trump assombra o governo brasileiro por jogar de vez o bolsonarismo no abismo do isolacionismo internacional. Daí a torcida feroz para não dar o “outro lado”.
Publicado em VEJA de 29 de julho de 2020, edição nº 2697