E depois veio o silêncio
80 tiros foram disparados pelas forças do Estado contra o carro em que Evaldo Rosa levava a família. Ainda não se ouviu condenação oficial ao assassinato
Dispor as flores que adornavam cenas de novelas era uma das tarefas que Evaldo dos Santos Rosa, o Manduca, desempenhou nos dezesseis anos em que trabalhou na montagem de cenários da Rede Globo. Às 11h30 da quarta-feira 10, a última coroa de lírios foi depositada sobre seu caixão. Evaldo, que nos últimos anos de vida trabalhou como músico e segurança de uma creche, caiu como mais uma vítima da interminável tragédia carioca — só que, desta vez, com peculiaridades ainda mais dramáticas. No domingo 7, ele dirigia um carro que foi alvo de mais de oitenta tiros disparados por nove militares do Exército em Guadalupe, Zona Norte do Rio. “Você me prometeu que a gente ia envelhecer junto, Manduca”, gritou a viúva, Luciana dos Santos, antes de desmaiar no enterro do marido. Ela, o filho de 7 anos, o padrasto e uma amiga estavam no carro que os levava para um chá de bebê — e sobreviveram ao fuzilamento. O choro desesperado de Luciana no sepultamento do marido contrastou com o silêncio das autoridades sobre o assassinato cometido por forças de segurança. Rápido para aplaudir os policiais quando matam bandidos, o presidente Jair Bolsonaro não condenou de imediato a ação desastrosa dos soldados que alvejaram oitenta vezes o carro que conduzia uma família. Já o governador do Rio, Wilson Witzel, primeiro disse que não lhe cabia fazer juízo de valor sobre o episódio. Só quatro dias depois do assassinato disse, enfim, que a ação foi um “erro grosseiro”. Não houve mensagens oficiais de solidariedade, nem mesmo um modesto pedido de desculpa ou uma promessa de reparação. E nenhuma autoridade, do governo federal ou estadual, sequer cogitou comparecer ao enterro da vítima inocente.
Por volta das 14h30 de domingo, Evaldo saiu do subúrbio Marechal Hermes, onde morava havia vinte anos, a caminho de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, onde planejava participar de um chá de bebê. Já dentro do carro, Luciana fez uma selfie da família, a última imagem de Evaldo vivo. Manduca dirigia; ao seu lado estava Sérgio Gonçalves, padrasto de Luciana, e, no banco traseiro, acomodavam-se Luciana, o filho de 7 anos e a amiga Michele Leite. Os sorrisos registrados na foto duraram seis minutos, até o momento em que o Ford Ka foi fuzilado. No próprio domingo, o Comando Militar do Leste divulgou uma nota sobre o episódio, na qual afirmava que seus subordinados haviam reagido a uma “injusta agressão” de assaltantes. Tudo errado: ninguém estava armado no carro de Evaldo. No dia seguinte, a versão oficial foi corrigida.
Em depoimentos à Delegacia de Polícia Judiciária Militar, os militares disseram que, pela manhã, haviam trocado tiros com bandidos que se encontravam em um Ford Ka branco. Depois do almoço, eles foram avisados de que o veículo estava circulando pelo bairro vizinho à Vila Militar, onde há uma grande concentração de quartéis. A bordo de veículos do Exército, começaram então uma caçada que terminaria com o desastre. Ao localizarem um carro semelhante ao dos bandidos, saltaram e dispararam contra o veículo. “É tiro!”, exclamou Evaldo ao ouvir estampidos. “Manduca, o Exército está ali”, avisou Luciana. Segundos depois, ele seria atingido. Ferido, com a cabeça já sobre o volante, ainda teve forças para pedir que o filho fosse retirado do carro. Foram suas últimas palavras. “O sangue espirrou todo no meu filho. E os militares rindo, eles rindo de mim. Eu pedi gritando pra eles socorrerem, e eles não fizeram nada”, contou Luciana, aos prantos. VEJA apurou que ele foi atingido na cabeça, tórax e abdômen por sete tiros, munição usada em pistolas 9 mm.
Doze militares faziam parte do grupo — um segundo-tenente, um terceiro-sargento e dez soldados. Dois deles não foram indiciados: apenas dirigiram os veículos. Nove confessaram ter feito disparos contra o carro da família; um único soldado alegou não ter acionado a arma. Nos depoimentos à Justiça Militar, os atiradores afirmaram que não houve uma ordem para a ação — dispararam a esmo. Desrespeitaram assim as chamadas “regras de engajamento”, que definem procedimentos de abordagem em situações semelhantes — atirar para matar deveria ser a última opção, não a primeira. Sérgio, padrasto de Luciana, foi atingido quatro vezes, em regiões não vitais do corpo. A chuva de balas também feriu Luciano Macedo, catador de papel que tentou ajudar a família a escapar do pelotão de fuzilamento. Até o fechamento desta edição, na quinta-feira 11, ele continuava internado em estado grave. O carrinho que usava para transportar a sucata ainda estava jogado em uma calçada próximo ao local do crime.
Os dez indiciados foram ouvidos pela juíza Mariana Queiroz Aquino Campos, da 1ª Auditoria da 1ª Circunscrição Judiciária Militar, na Ilha do Governador, Zona Norte do Rio, na quarta-feira, duas horas depois do funeral do homem que eles mataram. Na audiência, o procurador Luciano Gorrilhas pediu que a prisão em flagrante de nove dos dez militares — os que confessaram ter atirado — fosse transformada em preventiva, sem prazo determinado. A juíza acatou o pedido. Os acusados, todos jovens, eram na maioria negros, assim como Evaldo. Vestiam a farda na audiência.
Os nove militares pagarão pelo crime, se condenados, pois a culpa dessa morte em particular é exclusiva deles. Mas o assassinato de Evaldo acontece em meio a uma infeliz conjunção de circunstâncias: de um lado, uma sociedade farta pelo assalto cotidiano da bandidagem, e de outro, autoridades que prometem a solução mais rápida — e bruta, e ineficaz — para o problema: sair matando. Se a vítima for um inocente cidadão de bem, como Evaldo, será um lamentável efeito colateral. Paciência. “Os governantes têm responsabilidade indireta”, avalia Ilona Szabó, diretora do Instituto Igarapé, dedicado a estudos sobre o crime. “A retórica da violência tem efeitos práticos.”
Na quinta-feira 4, quando a Polícia Militar de São Paulo realizou uma operação contra uma quadrilha que assaltaria bancos em Guararema — que resultou na morte de onze suspeitos —, o governador João Doria (PSDB) concedeu entrevista dizendo que os agentes estavam de parabéns por colocar os bandidos no cemitério. Bolsonaro, em post no Twitter, também felicitou os policiais pelas mortes, enquanto o senador Major Olimpio (PSL-SP) foi além: afirmou que os policiais são “verdadeiros lixeiros da sociedade”. Os policiais em Guararema podem ter sido compelidos a reagir a bala contra uma quadrilha bem armada — mas o elogio desmedido à solução mais violenta, antes de qualquer investigação, reforça uma mensagem perversa: o bom agente da lei não é o que protege inocentes e prende suspeitos, mas aquele que mata. Ainda mais grave foi a reação de Witzel à ação policial na favela Fallet-Fogueteiro, no Rio, em 8 de fevereiro, quando treze traficantes foram mortos. Há substanciais indícios de que pelo menos alguns não tenham morrido no tiroteio, mas executados, e ainda existe a suspeita de tortura. Mas o governador correu ao Twitter para elogiar a “ação legítima” e anunciar que a polícia seguiria agindo com “rigor”.
Rigor de fato se espera dos agentes policiais, mas dentro da lei que lhes cabe proteger. A mesma lei já os protege nos casos em que se veem obrigados a usar força letal contra criminosos, porém o pacote anticrime do ministro Sergio Moro quer flexibilizar ainda mais essas disposições, em obediência a uma promessa de campanha de Bolsonaro: ampliar o “excludente de ilicitude” dos policiais. Na proposta do ministro da Justiça, o artigo 23 do Código Penal, que estabelece o direito à legítima defesa, seria alterado para incluir a possibilidade de o juiz não sentenciar o indivíduo — civil ou agente da lei — que cometer “excesso” sob “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Moro tem insistido que isso não é uma “licença para matar”. Foi o que reafirmou em uma conversa a portas fechadas com deputados, nesta semana — na qual, como seria previsível, foi questionado sobre o assassinato de Evaldo: respondeu que o episódio não se enquadraria na nova lei, pois não se tratava de legítima defesa. Disse o mesmo no programa de entrevistas de Pedro Bial, na Globo. Qualificou então a ação militar que resultou em morte de “incidente trágico”. Seu colega do Ministério da Defesa, general Fernando Azevedo, só mudou o adjetivo: teria sido um “lamentável incidente”, explicou ele, três dias depois da tragédia, em uma audiência pública na Câmara dos Deputados. Prometeu que a apuração vai “cortar na carne” se necessário. O porta-voz da Presidência, general Otávio Rêgo Barros, também empregou o mesmo eufemismo — “incidente” — para se referir ao assassinato de Evaldo. Ao que parece, Jair Bolsonaro não quis acrescentar um terceiro adjetivo ao tal incidente. Jornalistas perguntaram ao porta-voz se o presidente havia manifestado pesar pela morte de um inocente. Não, não havia.
Os executores de Evaldo pertencem ao Exército — um caso estranho de morte causada pelas Forças Armadas quando o Rio de Janeiro já não está sob intervenção federal. Alega-se que a área onde ocorreu o crime é de jurisdição militar, mas não é função dos soldados patrulhar as ruas. De todo modo, o mais comum é que a polícia seja a protagonista de eventos do gênero. Dados do último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, referentes a 2017, mostram que, enquanto os homicídios em geral aumentaram 2,9% no Brasil, as mortes causadas por policiais militares ou civis, em serviço ou de folga, cresceram 20,5%. No total, a polícia matou 5 144 pessoas; desses casos, 2 674 são confirmados como mortes em operações policiais (há aqui uma precariedade estatística: a maioria dos estados brasileiros não discrimina as mortes causadas por policiais em serviço ou nas horas de folga). Para efeito de comparação, 2 703 pessoas morreram em latrocínios (roubos seguidos de morte). Segundo a pesquisa, 99% das vítimas de policiais são homens, 76% são negros e 81% têm entre 12 e 29 anos. Evaldo escapa a esse perfil pela idade: tinha 51 anos.
Os números totais de 2018 não estão ainda consolidados, mas, no Rio, os dados preliminares já de 2019 são desoladores: em janeiro e fevereiro, 305 pessoas morreram na cidade por intervenção policial. É o maior número para o período nos últimos dezesseis anos. O governador, que em campanha advogou pela liberdade a atiradores de elite para matar bandidos que portassem fuzil, agora lava as mãos diante da letalidade policial: “Não faz parte do meu trabalho acompanhar quem são os mortos pela Polícia Militar. Quem tem de fazer isso é o Ministério Público”, disse Witzel no programa Bom Dia Rio, da Globo.
Naturalmente, os policiais também estão entre as vítimas da violência urbana: 367 morreram em serviço no país em 2017, ainda segundo o anuário de segurança. “O grau de violência do crime, inclusive contra policiais, é elevado. Isso tem levado os policiais a se preparar, alguns até demais, para dar uma resposta adequada em situações de confronto”, afirma José Vicente da Silva Filho, coronel reformado da PM-SP e ex-secretário nacional de Segurança Pública. Ele diz que uma flexibilização das leis de legítima defesa exigiria um compromisso dos estados com maior treinamento e qualificação das polícias. Uma pesquisa recém-divulgada do Datafolha, aliás, abala a certeza, demonstrada por Bolsonaro e seus partidários, de que a população brasileira apoia toda e qualquer medida que vá na linha “bandido bom é bandido morto”. Sim, 73% dizem que a polícia deve ser autorizada a matar em legítima defesa — o que é apenas o razoável —, mas 68% acreditam que a segurança não vai melhorar se a polícia matar mais suspeitos. Uma maioria de 83% discorda de que uma pessoa deva escapar à punição por estar “nervosa” ao atirar em alguém, o que é uma formulação possível da “violenta emoção” do pacote de Moro. E 82% reprovam a ideia de conferir mais liberdade aos policiais para atirar quando há risco de atingir inocentes.
Apesar desse consenso contra a matança indiscriminada, a sociedade brasileira ainda se mostra passiva diante de crimes como o assassinato de Evaldo. “Nos Estados Unidos, a sociedade estaria revoltada com uma morte causada pelas forças de segurança”, avalia Samira Bueno, diretora executiva do Fórum de Segurança Pública. De fato, lá o debate sobre violência policial e racismo passou por um momento inflamado em 2014, quando veio a público uma sequência de casos em que jovens negros foram mortos pela polícia — o primeiro e talvez mais escandaloso foi o de Eric Garner, esgoelado até a morte em uma calçada de Nova York por causa de uma infração trivial, a venda de cigarros contrabandeados. No Brasil, até agora, nem a sociedade nem os seus representantes eleitos prestaram as devidas reparações à família de Evaldo. “Cercaram o carro do meu cunhado, mataram ele e ninguém foi falar com a família”, desabafou, no funeral, Leverson dos Santos, cunhado de Evaldo. “Meu sobrinho me pergunta por que os coleguinhas da escola vão ter pais velhinhos e ele não. O presidente não disse nada, o governador também não.” Amigos e parentes de Manduca deixaram o velório em uma pequena passeata até a Vila Militar, a poucos quilômetros do cemitério. Nenhuma autoridade militar os recebeu. O símbolo do protesto foi uma bandeira manchada de vermelho, um eco distante mas ainda audível do verso de Navio Negreiro, de Castro Alves, no qual uma bandeira serve de mortalha a todo um povo.
Publicado em VEJA de 17 de abril de 2019, edição nº 2630
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