Duas histórias com finais distintos traçam o retrato do aborto no Brasil
Casos de violência sexual seguidos de gravidez evidenciam eventos traumáticos e deixam lição de que decisão final sobre aborto deve ser sempre da vítima
VEJA reuniu duas histórias de violência sexual seguidas de gravidez com finais diferentes. Em comum, ambas têm a dificuldade das vítimas em lidar com a situação e a certeza de que o episódio será traumático, independentemente do desfecho. O amparo do Estado, também distinto nos dois casos, se revela fundamental. A única certeza é a de que a escolha entre ter ou não o filho deve ser sempre da vítima.
“Tive de provar que era vítima”
Vinte anos após ser vítima de estupro e ter se submetido a um aborto, Fernanda (nome fictício) diz que ainda teme ser atravessada por olhares de pena e repúdio, embora o assunto já não seja mais tão tabu. Ela afirma viver hoje um momento especial ao lado do marido, com quem acaba de fazer uma longa viagem internacional. O anonimato ao relatar todo o horror que passou no fim da adolescência é uma forma de autoproteção, inclusive em relação a extremistas. Fernanda conta que, aos 17, foi violentada por um homem que fazia bicos na quadra de tênis que ela frequentava.
Era de tarde, e a adolescente pedalava a caminho da academia, numa pequena cidade do interior paulista onde morava com os pais, quando passou a ser perseguida pelo criminoso, também de bicicleta. Ao emparelhar com a jovem num trecho vazio, ele deu início às ameaças, dando a entender que se tratava de um assalto. Mas a estudante terminou empurrada para dentro de uma casa de veraneio fechada, cujo portão havia sido arrombado, e foi estuprada. Era o começo de um calvário na vida de Fernanda, que, ao olhar para trás, ainda tem dificuldades de nomear tudo o que sentiu naquela época.
Ao falar do passado, por vezes, precisa parar e respirar. Logo após o estupro, o agressor, dizendo que poderia matá-la, ainda tentou fazer com que Fernanda contasse a outras pessoas que ele era seu namorado. Ela o classifica como psicopata. Amparada no mesmo dia pela mãe, foi ao ginecologista particular e tomou a pílula do dia seguinte, além de medicamentos contra DSTs. Dias depois, no entanto, com a menstruação atrasada, descobriu através de testes que estava grávida. “Eu nem tinha me recuperado do baque, e veio mais essa camada de terror”, lembra ela, que diz depois ter sido alvo de um “rolo compressor”. Antes mesmo do resultado positivo, teve que enfrentar o despreparo do sistema que lhe deveria dar assistência.
Para o exame de corpo delito, precisou se deslocar até outra cidade e aguardar o legista terminar de jantar. “Passei por um exame horrível, com o legista perguntando da minha vida sexual na frente da minha mãe. Todo esse processo foi um rolo compressor”, diz ela, referindo-se a outras situações que viriam adiante. Na sua cidade, de pouco mais de 60 mil habitantes, teve seu relato questionado por um médico indicado por um centro de assistência social: foi a primeira vez em que teve que se defrontar com afirmações que colocavam em dúvida se a gestação era decorrente de estupro.
Na época, ela tinha um namorado, advogado, que ajudou na longa jornada de provar o estupro e incriminar o autor. O criminoso, por quase um mês, fez ameaças a Fernanda, através do seu celular, que ele roubara. Um dia, ela atendeu uma ligação na casa dos pais. “Ele disse que mataria toda a minha família, e eu gritei. Saímos eu e meus pais para a delegacia, mas o reconheci perto da minha casa, com um comparsa”, recorda a vítima, contando que, acionada, a PM chegou rápido e efetuou a prisão, quase um mês depois da situação de violência.
Seu algoz, porém, não ficaria no xadrez por muito tempo. O caso foi parar nas mãos de uma juíza que também colocou em dúvida o estupro. Sob a justificativa de que a relação sexual poderia ter sido consentida, a magistrada soltou o criminoso. “A juíza do meu processo julgou que eu acusei um inocente para fazer aborto legal”, afirma. “Esperam sempre da mulher fragilidade, e eu não tinha essa postura. Querem que você esteja em condição humilhante, implorando por um direito. E eu contava a sequência de fatos. Uma psicanalista depois falou que, na verdade, eu estava em choque”.
O homem, que tinha por volta de 23 anos, tentaria depois violentar mais uma garota na cidade, indo preso novamente. A vitória de Fernanda no tribunal levou dez anos para acontecer, e na segunda instância.
O aborto foi realizado quando a jovem estava com quase dois meses de gestação, mas na capital paulista. Diante das barreiras impostas ao procedimento na pequena cidade onde vivia, os pais, após pesquisa, a levaram ao Hospital Pérola Byington. “Lá, me deparei com uma salão lotado, todas vítimas de violência sexual. Havia crianças e até uma senhora de uns 50 anos grávidas. Eu até então não tinha noção da magnitude do problema, porque há 20 anos isso era muito tabu. Foi chocante e impactante essa realidade, que não se comentava”, afirma ela.
O procedimento adotado, relata a ex-professora, foi o menos invasivo de todos. “O aborto aconteceu no dia 31 de dezembro, me devolvendo a vida num ano novo”, confessa ela, que resume o período entre o estupro e o aborto como uma fase esgotante da sua vida, hoje guardada num lugar de memória que “não vale a pena voltar”.
Mas, por causa do projeto de lei antiaborto, que chama de “maldito”, Fernanda se sente na obrigação de falar. “Isso é fruto de parlamentares que não fazem nada, a não ser ficar na pauta de costumes para ganhar o eleitorado fundamentalista. Capitalizam votos em cima do sofrimento de meninas. São pouquíssimas cidades que têm condições de oferecer suporte a vítimas de estupro. E quem em sã consciência deixa uma gravidez decorrente de estupro avançar semanas? Ou é uma criança que não sabe o que está passando ou uma mulher enrolada pela fragilidade das instituições em fornecer acolhimento”.
Fernanda também se preocupa com o estigma que as mulheres estupradas muitas vezes carregam por toda uma vida devido ao preconceito até dos mais progressistas. “Acham que é uma maldição que você carrega para o resto da vida. Isso desincentiva as pessoas a denunciarem. Mas eu sou muito, muito feliz”.
“São duas vidas inocentes”
Depois de um relacionamento conturbado de 12 anos, em que teve três filhos, Maria (nome fictício) se separou do marido e passou a viver sozinha em uma casa simples, numa pequena cidade do interior paulista na região de Ribeirão Preto. A vida difícil, num bairro pobre, ficou um pouco melhor depois que ela conheceu um vizinho que morava com a mãe na esquina de sua rua.
Certo dia, enquanto passava, o homem perguntou se ela era solteira e se poderiam ser amigos. Sozinha há dois anos, Maria sentiu que a vida poderia ter um recomeço e assentiu à sedutora cantada. Começaram a namorar, cada um em sua casa. A mãe de seu pretendente era doente e fazia hemodiálise com frequência. Um dia, em crise, a mulher precisou ser internada e não resistiu. Do episódio, surgiu uma união.
A gravidez, pouco depois, veio com naturalidade, mesmo com a grande quantidade de filhos para cuidar – o homem também era responsável por dois filhos de um relacionamento anterior. Hoje, o menino tem quatro anos. Apesar das dificuldades, a vida parecia ser semelhante às de muitas famílias brasileiras. O companheiro era muito atencioso e carinhoso com os filhos especialmente com Fátima (nome fictício), uma menina de apenas 11 anos.
O aparente afeto, no entanto, escondia abusos frequentes. Quando Maria saía para trabalhar, seu marido estuprava a menina, antes de se encaminhar para o próprio serviço. Mesmo com a situação acontecendo dentro de sua casa, Maria só foi entender o que se passava muito tempo depois.
O caso veio à tona quando a Fátima passou a sentir fortes dores na barriga. Por mais de uma semana, a garota se queixou. Em uma unidade de saúde do município, investigou-se apendicite e cólica menstrual. Os exames não apresentavam qualquer alteração, nem mesmo os de sangue. Até que uma tomografia revelou tratar-se de uma gravidez. “Me perguntaram se a minha filha tinha namorado, respondi que não, já que se tratava de uma criança”, conta Maria. “Aí disseram que ela estava grávida. A pressão subiu, passei mal.”
O Conselho Tutelar da cidade foi acionado, mas a garota se recusava a dizer o que tinha acontecido. Chegou a falar que havia sido estuprada por um andarilho, mas a história não batia. O companheiro de Maria se tornou um suspeito natural, já que pesava contra ele a acusação de ter cometido o mesmo crime contra a própria irmã.
O homem, no entanto, negava qualquer envolvimento e se prontificou a colaborar com as investigações, fornecendo material genético para um teste de DNA. A vida seguiu em frente, com a menina grávida convivendo com seu carrasco. Quando o exame ficou pronto, veio a confirmação: o padrasto era o pai da criança e foi preso. “Levaram ele para a delegacia. Achei que era coisa de pensão, mas quando liguei me disseram que ele era o pai do meu neto. Meu mundo caiu”, diz.
O caso gerou grande revolta na pequena cidade paulista. Maria e sua filha foram acusadas de ser coniventes com o crime. “As pessoas falavam que ela gostava e que eu sabia de tudo. Mas não era verdade”, assegura. “Como uma menina de 11 anos poderia gostar de algo tão cruel? Quanto a mim, só tomei conhecimento dos detalhes, quando li seu depoimento à polícia, confessando tudo”, conta a mãe.
Encaminhadas para o serviço de Saúde de Ribeirão Preto, Fátima e a mãe foram atendidas por médicos e profissionais de saúde que apresentaram a possibilidade de um aborto previsto em lei. Durante o ultrassom, que em casos de gravidez resultante de estupro é feito de forma que a gestante não seja obrigada a enxergar a tela, a menina pediu para ver a criança que levava na barriga. Foi desaconselhada, mas ela e sua mãe insistiram. Ficaram sabendo se tratar de um menino.
A partir daí, mãe e filha se recusaram a interromper a gravidez: “Via duas pessoas inocentes ali”. Até hoje, Fátima se recusa a falar. Maria tenta tocar a vida, criando os cinco filhos e o neto: “Entreguei a Deus. Tô seguindo em frente com Ele me guiando”, diz.