
Há um modo de entender as contradições do Brasil durante a ditadura militar, entre 1964 e 1985: pelos olhos do banqueiro José Luiz de Magalhães Lins. No comando do poderoso Banco Nacional, hoje extinto, ele articulou — e deu dinheiro — para a campanha do plebiscito que, em 1963, devolveria a João Goulart a Presidência, derrotando o parlamentarismo que os quartéis impunham como condição para aceitá-lo no Planalto. Em 1964, ele seria chamado a conversar com o tio, o governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, conspirador civil de primeira hora, para convencê-lo a interromper a caravana de tanques que seguiam para o Rio de Janeiro — contudo, as tropas mineiras tomaram o caminho da estrada e Goulart terminaria deposto. Em meio ao mundo político, entre deputados, senadores e generais, Magalhães Lins tinha uma faceta fascinante — como se fosse dois.
Próximo ao mundo artístico, ele foi o principal apoiador do cinema novo. Entre 1961 e 1966 pagou as contas de clássicos como Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, Os Fuzis, de Ruy Guerra, e O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrade. Sempre que estava no vermelho, e isso era quase sempre, Glauber Rocha pedia ajuda ao amigo. “Era o amigo certo das promissórias incertas”, na definição do escritor Otto Lara Resende. Magalhães Lins não era um homem de esquerda — mas sabia o lado correto para estar. Quando a repressão quis alcançar os diretores de cinema, levando-os à cadeia, ele fez cara feia. “Isso aí eu queria que você não mexesse, deixa por minha conta”, disse a um coronel que trabalhava com o governo. “Tem que dar lugar para desaguar um pouco as mágoas.”
Avesso a ideologias, gentil e bom de conversa, ele era capaz de dar as mãos simultaneamente a inimigos íntimos — salvou a Última Hora de Samuel Wainer da bancarrota e avalizou uma dívida de milhões de dólares de Roberto Marinho com o grupo americano Time-Life, nos primórdios da TV Globo —aliás, o Jornal Nacional tem o nome que tem porque, nos primeiros anos, foi patrocinado pelo banco mineiro dirigido por Magalhães Lins. Ele fez valer, ao longo da vida, uma frase do cronista Antônio Maria, escrita nos anos 1960, e que só não faliu porque bebeu da generosidade do banqueiro: “Ele é muito sério, sem ser triste. Muito equilibrado, sem ser velho”. Para o economista Armínio Fraga, sócio-fundador da Gávea Investimentos, ele tinha a “raríssima capacidade de identificar o que era realmente relevante em situações frequentemente muito complexas”. O jornalista Ruy Castro descobriu, nas pesquisas para o livro Estrela Solitária, que Magalhães Lins havia socorrido Garrincha inúmeras vezes — aconselhando o ingênuo craque a tirar dinheiro debaixo do colchão para pô-lo numa conta bancaria (que seria fatalmente zerada). O mecenas delicado morreu em 3 de fevereiro, aos 93 anos, no Rio de Janeiro.
Publicado em VEJA de 15 de fevereiro de 2023, edição nº 2828