Crime sem castigo: de cada dez multas ambientais, apenas uma é paga
A falta de penas efetivas ajuda a alimentar cenário caótico. De todo o valor cobrado das punições, pouco mais de 1% entra nos cofres públicos
Embora tenha uma longa história de devastação ambiental, o Brasil assistiu chocado nas últimas semanas a um triste espetáculo de proporções inéditas: a proliferação de incêndios que impactaram a qualidade de vida da população, a atividade econômica e a reputação internacional do país. Como lembrou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU, na terça-feira 24, só na Amazônia as chamas destruíram 5 milhões de hectares de mata, uma área equivalente a de países como Holanda e Suíça. Em setembro, segundo o Inpe, foram mais de 75 000 focos em todo o Brasil, número muito superior à média mensal de 6 000 registrada no primeiro semestre. Colocado contra a parede, o governo saiu distribuindo promessas e punições: em dois meses autuou mais de 420 responsáveis por grandes incêndios em valores que, somados, superam 371 milhões de reais. A medida, embora incontornável, tem pouco efeito prático: o histórico mostra que as multas, em sua maioria, não são pagas e que a impunidade para crimes ambientais é, de fato, a regra que floresce no país.
O furor com que o governo usa a caneta para lavrar autos de infração é inversamente proporcional a sua competência para recebê-los. Levantamento feito por VEJA com base em cadastro do Ibama mostra que nos últimos trinta anos a maior agência ambiental brasileira aplicou 272 000 multas, mas recebeu apenas um terço delas, especialmente as menores. Em relação a valores, dos 44 bilhões de reais autuados, apenas 569 milhões de reais entraram nos cofres públicos, ou seja, 1,3% do total. Uma em cada dez sanções perdeu a validade em razão da demora para concluir o processo administrativo. Outras tramitam indefinidamente nos escaninhos da burocracia estatal, arrastando-se em meio a prazos infinitos e recursos de defesa que nunca acabam. Hoje, o Ibama tem nada menos que 130 000 multas à espera de um desfecho, sendo que cerca de 9 000 delas vão prescrever nos próximos dois anos. O problema parece crescer. Nos últimos cinco anos, o órgão aplicou 57 883 multas, mas recebeu apenas 5 103. “O fato é que o Brasil está exposto e vulnerável à ação dos incendiários”, escreveu a jornalista Míriam Leitão, uma das profissionais mais sérias e gabaritadas do país na cobertura de assuntos ambientais, em uma coluna recente no jornal O Globo.
As chamas da impunidade alimentam diretamente a destruição dos nossos grandes biomas, incluindo a Amazônia. Em 2020, uma reportagem de capa de VEJA listou os dez maiores desmatadores da floresta com base em multas aplicadas pelo Ibama. Quase cinco anos depois, nove deles continuam recorrendo e ainda não pagaram as infrações. Em primeiro lugar no ranking, o pecuarista Édio Nogueira tem em seu nome uma autuação de 50 milhões de reais por desmatar quase 24 000 hectares de mata nativa em uma de suas propriedades, a Fazenda Cristo Rei, em Paranatinga, em Mato Grosso, o equivalente a 22 000 campos de futebol. A propriedade está localizada a 18,5 quilômetros do limite com o Parque Nacional do Xingu.
Enquanto os criminosos atuam em ritmo acelerado, a estrutura estatal encarregada de puni-los anda a passos lentos, por questões burocráticas e de falta de recursos humanos e financeiros. Segundo um relatório de 2022 do Tribunal de Contas da União (TCU), o tempo médio para tramitação de um processo no Ibama é de seis anos, podendo chegar a onze, quando o prazo estimado para a tramitação em primeira instância deveria ser de apenas 360 dias. Somente a fase de instrução pode levar até três anos, um absurdo. O resultado: a taxa de julgamento das infrações não chega a 20%. “Os advogados utilizam recursos intermináveis para atrasar a conclusão dos processos”, diz o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, que culpa também o alto volume de novos processos e a falta de efetivo para uma análise mais célere dos casos. Fora do âmbito do órgão, não raro, as defesas recorrem também à Justiça para tentar anular suas multas, o que atrasa ainda mais a conclusão dos procedimentos. “Como os processos administrativos acumulam falhas, na sua maioria, por causa de falta de infraestrutura e de conhecimento jurídico, há muitas brechas para os infratores se livrarem das punições”, afirma Rômulo Sampaio, advogado na área ambiental e professor da FGV Direito Rio.
Justamente por causa desses gargalos processuais, aumentar os valores das multas, como fez agora o governo federal em resposta aos incêndios que atingem o país, não resolve o problema. Em outra frente, muito mais promissora, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, encaminhou à Casa Civil um anteprojeto que aumenta penas de crimes ambientais e propõe agravante para episódios que provocarem lesões corporais ou a morte de pessoas e animais. O futuro projeto de lei está nas mãos de técnicos da pasta de Rui Costa, somando pareceres da Advocacia-Geral da União e do Ministério do Meio Ambiente. Mas é preciso correr contra o tempo. Até o último dia 20, a Polícia Federal havia aberto 83 inquéritos para apurar a autoria e materialidade das queimadas que devastaram incontáveis quilômetros do país. O Conselho Nacional de Justiça, chefiado pelo ministro Luís Roberto Barroso, do STF, e o Conselho Nacional do Ministério Público, presidido pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet Branco, emitiram uma recomendação conjunta para que magistrados e membros do MP agilizem o trâmite de inquéritos e processos de crimes ambientais, evitando que os casos morram na praia por causa da prescrição.
Todos os governos recentes fracassaram no combate a esses problemas, mas é inegável a contribuição negativa da gestão de Jair Bolsonaro no agravamento do panorama. Na época, a análise de processos e a aplicação de multas praticamente pararam — o que elevou o risco de prescrição para mais de 37 000 infrações, segundo o TCU. O então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, implementou uma nova etapa no processo administrativo ambiental, as audiências de conciliação, que criaram mais um gargalo para a aplicação das autuações. Uma manobra do então presidente do Ibama, Eduardo Bim, também abriu brecha para a invalidação de 183 000 processos que totalizavam 29,1 bilhões de reais. Em novembro de 2023, o Superior Tribunal de Justiça, atendendo a pedido da Advocacia-Geral da União, derrubou a decisão e validou a cobrança dessas multas.
A despeito da herança problemática, o governo Lula peca também ao produzir frustrações em série para uma gestão que prometia fazer da defesa do meio ambiente uma de suas principais vitrines. Exemplo disso foi a recente greve de servidores do Ibama e ICMBio, que cruzaram os braços para reivindicar melhores condições de trabalho, reajuste salarial e reestruturação de carreiras. A paralisação, que durou mais de seis meses, afetou principalmente as ações de fiscalização e licenciamento. Só no primeiro trimestre, o número de multas aplicadas pelo Ibama na Amazônia caiu 81,65%, segundo levantamento da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente. Apesar de terem assinado o acordo para voltar ao trabalho, os servidores mostraram descontentamento com a proposta apresentada pelo Ministério da Gestão e prometeram manter o estado de mobilização.
No Congresso, o cenário em termos de preocupações ambientais é igualmente desolador. Levantamento de VEJA mostra que os deputados apresentaram 35 projetos de lei para endurecer penas por incêndios só em 2024 — no entanto, nenhum entrou na pauta. “A tudo aquilo que implica maior responsabilidade, principalmente ao setor da agricultura, tem uma resistência muito grande”, lamenta o deputado Nilto Tatto (PT-SP), presidente da Frente Parlamentar Ambientalista da Câmara. A recente escalada das queimadas, porém, finalmente mobilizou os políticos, que aprovaram aumento no Orçamento para combater o problema. A própria bancada ruralista declarou apoio a três projetos que preveem punições mais severas para incêndios, com o argumento de que esse tipo de crime causou prejuízos bilionários ao setor agropecuário. “Está bem claro que as penas são insuficientes, tanto para desmatamento quanto para incêndios. O que realmente assusta os infratores é ter a terra embargada, pois dificulta a obtenção de crédito rural”, afirma Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama.
É possível, sim, agir de forma mais efetiva no combate a esse problema, como mostram exemplos de outros países. A Indonésia reduziu sua taxa de desmatamento em impressionantes 64% entre 2015 e 2022, de acordo com dados do monitor internacional Global Forest Watch. Nesse período, a nação que abriga a terceira maior floresta tropical do planeta realizou uma ampla ofensiva de descarbonização do agronegócio que incluiu, entre outras medidas, a suspensão de emissão de novas licenças para deflorestamento por quase dez anos. Estratégias semelhantes, incluindo pactos com o setor privado para fomentar mercados voluntários de carbono, tiveram reflexos animadores na vizinha Malásia, onde a perda de cobertura florestal desacelerou 57% no mesmo período.
Transformar o crime ambiental em uma prática inaceitável, que deve ser punida com o rigor suficiente para inibir a sua reincidência, é uma dificuldade que o Brasil também pode superar. Guardadas as devidas proporções, outros desafios se impuseram às autoridades na história recente em diferentes áreas, como no caso da imposição do uso do cinto de segurança para frear as mortes no trânsito. A fiscalização ostensiva e a aplicação de multas salgadas mudaram a cultura dos motoristas. Parecia também impossível acabar com o hábito de fumar em lugares fechados, até que as autoridades passaram a atuar com rigor. Todas as resistências foram vencidas com persistência, orientação e a firmeza do Estado na aplicação da lei.
No caso do atual governo federal, falta passar da teoria à prática. No recente discurso na ONU, Lula não parecia nem a sombra daquele que, ao conquistar seu terceiro mandato, acenou ao mundo com uma nova era na política ambiental do país, que se apresentava como alguém pronto para liderar o enfrentamento planetário às mudanças climáticas. Listou as cheias no Sul, a seca na Amazônia, disse que o combate ao aquecimento global é uma tarefa conjunta, mas ressaltou que “o meu governo não terceiriza responsabilidades”. “Já fizemos muito, mas sabemos que é preciso fazer mais. Além de enfrentar o desafio da crise climática, lutamos contra quem lucra com a degradação ambiental. Não transigiremos com ilícitos ambientais”, afirmou. O acerto da estratégia para coibir infratores, porém, parece no mínimo questionável, uma vez que ainda há muitos crimes sendo cometidos e pouca gente punida. Não adianta o Brasil querer o protagonismo mundial e o direito de apontar caminhos aos outros países enquanto não fizer a sua lição de casa.
Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2024, edição nº 2912