Correios: funcionários querem greve por privilégios como ‘bônus de férias’
Em meio à pandemia, eles ameaçam parar. Motivo: a direção da empresa quer acabar com benesses como 'vale-peru' e 'vale-cultura'
No Brasil, que sofre com a pandemia do coronavírus, milhões de trabalhadores perderam o emprego, mais alguns milhões tiveram o salário suspenso ou reduzido e outros tantos milhões estão vivendo à custa do auxílio emergencial do governo. Enquanto uns sofrem, outros lutam para manter suas benesses. Na última quarta-feira, funcionários dos Correios realizaram uma assembleia em Brasília. Na pauta, a aprovação de um indicativo de greve — proposta que, num primeiro momento, chamaria atenção apenas por ocorrer numa situação absolutamente inoportuna. Mas ela ganha contornos de bandalha quando se verifica que a motivação dos trabalhadores para cruzar os braços é evitar o corte de determinados privilégios e beira o escárnio quando se descobre a que se referem os tais mimos.
Os Correios têm quase 100 000 funcionários, 6 000 agências espalhadas pelo país e um faturamento superior a 18 bilhões de reais, mas, nos últimos anos, enfrentam uma crise financeira sem precedente. Se fosse uma empresa privada, provavelmente teria fechado as portas, abatida por um prejuízo que ultrapassa 2,4 bilhões de reais. Seguindo os manuais ortodoxos de administração, a estatal decidiu recentemente promover uma série de cortes de despesa. Um dos alvos da tesoura é o pacote de benefícios dos empregados. Um exemplo: a lei garante ao trabalhador o direito de receber um abono de férias correspondente a um terço de seu salário. Os Correios pagam dois terços. Além disso, mesmo em férias, o funcionário ainda recebe 1 000 reais de vale-alimentação. Outro exemplo: a licença-maternidade na estatal é de até 180 dias — dois meses a mais que o previsto em lei. Há ainda um auxílio-creche para crianças até 7 anos (que, nessa idade, em tese, já não estariam mais na creche), um “vale-cultura” mensal e um inusitado “vale-peru” anual, como é chamado o pagamento de um bônus natalino de 1 000 reais.
Diante dos números superlativos dos Correios, esses privilégios parecem penduricalhos sem importância. Mas, nos cálculos da própria estatal, custam cerca de 600 milhões de reais por ano. “Os benefícios estão sendo tirados porque a empresa não tem capacidade financeira nem condição de sustentar perante a sociedade a preservação deles em um momento tão difícil”, diz o general Floriano Peixoto, presidente da estatal (veja a entrevista na pág. 44). No ano passado, já em fase de restrições, os Correios registraram lucro, mas a recuperação, assim como aconteceu com outras empresas, foi interrompida com a chegada da pandemia. Em um comparativo com o primeiro semestre de 2019, a receita despencou. Apesar de a crise ter aumentado em 30% o movimento do setor de encomendas, o faturamento no segmento de cartas e correspondências sofreu uma redução de 820 milhões de reais, quando se compara o primeiro semestre deste ano com o mesmo período do ano anterior.
Em mensagem enviada aos funcionários, a estatal ressaltou que ainda houve gastos extras motivados pela pandemia, provocados pelo fechamento temporário de algumas unidades e a contratação de mão de obra terceirizada para compensar o afastamento de funcionários, e pediu a compreensão de todos. O argumento, no entanto, não sensibilizou a categoria, que promete paralisar as atividades em agosto. “O que está acontecendo é algo completamente fora do esquadro, coisa de ditadura, não tem cabimento. Como que, de uma hora para outra, fala-se em ignorar tudo o que foi negociado ao longo de anos?”, afirma Marcos César Alves, vice-presidente da Associação dos Profissionais dos Correios. Ele lembra que metade do quadro funcional dos Correios é formada por carteiros, que têm salário inicial de 1 757 reais, fora os benefícios. A estatal, por sua vez, calcula em 4 000 reais a remuneração média de seus funcionários. Hoje, a folha de pagamentos gira em torno de inacreditáveis 12 bilhões de reais (alô, Paulo Guedes!).
A Empresa de Correios e Telégrafos (ECT) foi criada durante a ditadura militar, em 1969, época em que a maior parte das comunicações de longa distância era realizada por meio de cartas. “Por mim, privatizava tudo, porque assim vai se desmobilizando uma atividade que já está quase em extinção”, diz a economista Elena Landau. O próprio presidente Bolsonaro anunciou, logo no início da gestão em uma entrevista a VEJA, a intenção de privatizar os Correios até 2021. A proposta, porém, ainda engatinha. A primeira etapa do processo, cuja responsabilidade é do BNDES, é a contratação de uma consultoria que vai se debruçar sobre a situação da empresa e traçar uma estratégia sobre o melhor formato de venda. Calcula-se que esses estudos, quando iniciados, levem de dois a três meses para ser concluídos. Na sequência, vem a parte mais complicada: a negociação política.
Ao lado do Ministério da Economia e da Secretaria do Programa de Parcerias de Investimentos, a privatização será tocada pelo Ministério das Comunicações, recém-assumido pelo deputado Fábio Faria. A missão do ministro será convencer deputados e senadores, historicamente refratários a privatizações, a encampar a proposta. Quem acompanha de perto o Congresso demonstra total incredulidade com o avanço da medida no curto prazo. Isso porque, além da conhecida má vontade dos parlamentares em relação ao tema, o ano legislativo já está praticamente encerrado em razão do calendário eleitoral. “Além disso, o presidente não vai querer começar a discutir um projeto de privatização polêmico e desgastante faltando um ano para a eleição”, aposta um experiente parlamentar. A equipe do ministro Paulo Guedes, otimista, afirma que o processo será concluído até julho do ano que vem. Já a greve dos servidores está programada para começar no próximo dia 4.
Publicado em VEJA de 29 de julho de 2020, edição nº 2697