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Com verba pública, comunidades terapêuticas priorizam fé sobre ciência

Maior programa federal para tratar de vício em drogas e álcool se fiam no velho modelo - o que se sobressai é a espiritualidade e o rigor nas normas

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Duda Monteiro de Barros Atualizado em 4 jun 2024, 09h33 - Publicado em 9 fev 2024, 06h00

Em uma passagem do Velho Testamento, o profeta Samuel pontua, tempestuoso, que “obedecer é melhor do que sacrificar”. O versículo paira como um alerta, enfatizando a importância da disciplina, em um mural que detalha o cotidiano de uma comunidade terapêutica no município de Seropédica, na Baixada Fluminense, com direito a muito culto e leitura da Bíblia. O Desafio Jovem Ebenézer, entidade criada para internar e tratar dependentes de álcool e drogas, compõe um conjunto de 2 000 instituições do gênero presentes em todo o Brasil, segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A maioria tem a fé como motor para a cura — 75% são ligadas a igrejas pentecostais (que predominam), católicas e outras denominações cristãs.

Em 25 de janeiro, o governo Lula habilitou 587 comunidades a receberem fundos públicos. No ano passado, o orçamento de 237 milhões de reais dedicado a elas superou o montante destinado à rede de atendimento psicossocial do SUS e fez desse o mais abrangente programa voltado hoje a quem sofre de vícios. Tamanho avanço, que se observa de 2020 para cá, quando a verba para tais comunidades inflou 90%, acende um alerta: o modelo, para um rol de respeitados especialistas, dá as costas à ciência e se distancia de modernos pilares disseminados mundo afora.

ENFIM, LIVRE - O universitário paulista Eduardo Real, 37 anos, rodou várias comunidades terapêuticas, onde vivia o ciclo de abstinência seguida de recaída. “Só consegui largar o crack com tratamento em liberdade”, diz
ENFIM, LIVRE – O universitário paulista Eduardo Real, 37 anos, rodou várias comunidades terapêuticas, onde vivia o ciclo de abstinência seguida de recaída. “Só consegui largar o crack com tratamento em liberdade”, diz (//Arquivo pessoal)

A reportagem de VEJA visitou três dessas comunidades e conversou com uma dezena de pessoas que tiveram passagens por lá. Uma parte não superou o vício, enquanto a outra segue duelando contra esse mal que atinge 10 milhões de brasileiros — uma doença crônica, segundo a OMS. “Me internei várias vezes, ficava abstêmio, mas saía dali e voltava a consumir drogas”, relata o universitário paulista Eduardo Real, 37 anos. Ele lança luz sobre um ponto que une as comunidades terapêuticas e faz a nata da academia lhes torcer o nariz: todas elas têm a internação como única via para o tratamento, estratégia que a Organização Pan-Americana de Saúde afirma com todas as letras ser ineficaz e só valer em casos específicos. “Não dá para abduzir ninguém de uma vida movida a drogas”, diz a psicóloga Adriana Oliveira, da Universidade Federal Fluminense. “Depois do isolamento, quase todos apresentam recaída.”

Outro ponto frágil neste modelo que brotou no país nos anos 1970, quando instituições religiosas adentraram o terreno da reabilitação de indivíduos com vício, é que o acompanhamento psicológico e psiquiátrico figura em plano secundário, ou inexiste. O que se sobressai é a espiritualidade e o rigor nas normas. A Casa Refúgio, em Cotia, a pouco mais de uma hora de São Paulo, pertence ao grupo das raras a dispor de psiquiatra, mas ele só aparece uma vez por semana para ouvir mais de 100 pacientes. A rotina dos internos é preenchida por atividades ligadas à igreja e por “laborterapia” — sem eco em estudos científicos de peso, a ideia é envolvê-­los com trabalhos de manutenção da própria comunidade em prol da cura. A eficácia das tarefas é aferida por um sistema de pontos: quem não as cumpre recebe penalidades variadas, entre as quais a redução do tempo de visita da família.

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TÁTICA DO MEDO - Em meio a uma crise por abuso de cocaína, o antropólogo Felipe Damasceno, 35 anos, se internou em uma comunidade de Belém. “Os terapeutas ficavam gritando para nos desestabilizar”, diz ele, que decidiu sair de lá
TÁTICA DO MEDO – Em meio a uma crise por abuso de cocaína, o antropólogo Felipe Damasceno, 35 anos, se internou em uma comunidade de Belém. “Os terapeutas ficavam gritando para nos desestabilizar”, diz ele, que decidiu sair de lá (//Arquivo pessoal)

Essas casas de acolhimento, que se fiam em estadas prolongadas de três a doze meses, foram oficialmente habilitadas em 2011, no âmbito do programa Crack, É Possível Vencer, do governo Dilma Rousseff, e começaram a coexistir com os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), estabelecidos em 2000 em meio a uma sacudida no sistema psiquiátrico público. A filosofia de um colide com a do outro. Afinados com a cartilha mais aplicada no cenário mundial, os CAPS substituíram os antigos manicômios, que se sustentavam nas internações, para defender a desintoxicação gradativa e um plano terapêutico multidisciplinar. “Nesses centros, que são referência, a pessoa não precisa romper com a vida prévia e participa ativamente de sua recuperação”, diz Marcelo Kimati, professor de saúde coletiva da Universidade Federal do Paraná. Na contramão, as comunidades terapêuticas se situam em sítios nos quais o isolamento é um valor cultivado.

Ali, a fé serve de ferramenta para suavizar o sofrimento e enquadrar moralmente os internos. “O vício nessas comunidades é entendido como pecado, numa doutrina tão intensa que se assemelha a lavagem cerebral”, avalia Lucio Costa, coordenador da ONG de saúde mental Desinstitute, que monitora o programa. Uma estrada de terra ao longo da qual pouco se avistam casas e gente conduz à construção azul que abriga a Desafio Jovem Ebenézer, em Seropédica, de vertente pentecostal, dona de vinte filiais no país. Atualmente, sessenta homens estão alojados no casarão. “Parece o céu”, define um dos funcionários. A agenda de atividades afixada à parede lista orações e inclui leitura da Bíblia. Os ritos religiosos, que ocupam mais da metade do dia, são rigidamente cronometrados. “A espiritualidade é tão válida no tratamento quanto a psicologia”, acredita o pastor Aldemi Paiva, que lidera a casa.

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Tudo isso transcorre com adversidade nas fiscalizações, que deveria ajudar a separar nesse imenso universo as instituições que funcionam daquelas que não cumprem com sua função original, de guindar pessoas das sombras do vício. Na Comunidade Maranathá, no bairro carioca do Engenho Novo, visitada por VEJA, o exercício da fé divide espaço com três psicólogos permanentes — uma raridade que, infelizmente, falta à maioria. De tão pulverizado, o sistema é difícil de monitorar e, para piorar, se situa no meio de um jogo de empurra — uma turma acredita que deve ser observado pela área da saúde, e outra, que fique sob a vigilância da assistência social. E é aí que ele acaba funcionando ao sabor da crença de cada comunidade. “Para realizar as internações, as comunidades precisariam de médicos 24 horas por dia”, diz Antônio da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria. “Sem a supervisão adequada, a verdade é que ficamos no escuro”, arremata Dayana Rosa, do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde.

NEM UM PIO - Hora de ver TV no Desafio Jovem Ebenézer: a rotina dos internos é regida por silêncio e uma severa cartilha de regras (à dir.)
NEM UM PIO - Hora de ver TV no Desafio Jovem Ebenézer: a rotina dos internos é regida por silêncio e uma severa cartilha de regras (à dir.) (Duda Monteiro de Barros/VEJA)

É sobre essa lacuna que se abrem brechas para as mais absurdas situações, como a que testemunhou o antropólogo Felipe Damasceno, 35 anos. Após duelar contra o vício em álcool e cocaína por quase duas décadas, ele decidiu internar-se em uma comunidade terapêutica de Belém. Assustou-se com o que viu. “Havia uma lógica de que os internos devem ser confrontados, então os supostos terapeutas gritavam e xingavam para nos desestabilizar”, diz, referindo-se à prática localmente chamada de “dinâmica educativa”. Já Eduardo Real, de São Paulo, rodou inúmeras dessas instituições em sua batalha contra a dependência de crack e cocaína. Em uma delas, a Vencendo Gigantes, em Vargem Grande Paulista, vivenciou o horror. “Fui medicado e espancado na hora de ir embora. Não queriam me deixar sair”, revela.

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Enredada em denúncias de violações aos direitos humanos, a casa fechou as portas. “As irregularidades surgem de estabelecimentos clandestinos ou clínicas de reabilitação que se dizem comunidades terapêuticas”, argumenta o pastor Fabrício Leiva, da Casa Refúgio, em São Paulo. Procurado pela reportagem, o Depad, órgão recém-criado no Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social para supervisionar o programa, afirmou por nota a VEJA que “as comunidades terapêuticas não concorrem com os CAPS, mas atuam de maneira complementar” e que a pasta “tem investido em fiscalização para garantir a qualidade dos serviços contratados e a dignidade humana.”

Instituições privadas, essas comunidades acabam por prosperar porque a rede pública não tem capacidade de lidar com a elevada demanda. Até aí, tudo bem. Mas por que, então, não se faz uma política de controle dessas organizações, com acompanhamento de resultados e do uso do dinheiro público? Estima-se que atualmente 80 000 brasileiros estejam sob os cuidados de uma comunidade terapêutica — uma fatia deles justamente nas vagas subsidiadas pelo governo. Quando surgiu no Reino Unido, nos anos 1950, o modelo despontava como uma alternativa ao velho tratamento manicomial, mirando um cuidado mais humanizado, e assim se espalhou pelo mundo. Mas, ao insistir no isolamento, foi sendo suplantado por táticas mais avançadas e ficando defasado. É sobre essa trilha do atraso que a gestão federal teima em caminhar.

Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879

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