Como nunca se viu
Investigadores frustram plano de complexidade inédita para libertar Marcola e descobrem que a bandidagem está em alerta depois da eleição de Bolsonaro
Desde a prisão em 1999 de Marcos Herbas Camacho, o Marcola, chefão do Primeiro Comando da Capital (PCC), as autoridades descobriram pelo menos seis planos para tirá-lo da cadeia, local onde cumpre condenações que somam mais de 330 de anos de pena. Nenhum plano, no entanto, foi tão audacioso como o desvendado em outubro pelos setores de inteligência da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) e do Ministério Público do Estado de São Paulo. Segundo as investigações, a nova operação envolveu a contratação de mercenários estrangeiros equipados com fuzis, lança-granadas e metralhadoras calibre .50, com poder de fogo para derrubar helicópteros em pleno voo. O plano, estima-se, custou ao PCC cerca de 100 milhões de reais. De acordo com as investigações, o uso de tamanho aparato é inédito, e tudo foi arregimentado com um objetivo concreto: soltar os cabeças da facção antes da posse de Jair Bolsonaro (PSL).
Durante sua campanha, e mesmo depois de eleito, Bolsonaro revelou, de maneira vaga, ter as seguintes propostas para a segurança pública: reduzir a maioridade penal, liberar o porte de arma e inocentar policiais que matarem em serviço — planos que exigem mudanças na legislação e uma longa discussão no Congresso, e seria de bom-tom que tivessem também o aval do futuro ministro da Justiça Sergio Moro. Mas, ainda que falte concretude às suas ideias, o discurso de “pegar pesado” com a criminalidade, ou de que “o direito que o preso tem é não ter direito”, despertou no PCC o seu maior temor: que o novo governo pressione a transferência de seus líderes para presídios federais. Neles estão encarcerados os chefes do Comando Vermelho (Fernandinho Beira-Mar), dos Amigos dos Amigos (Nem da Rocinha) e da Família do Norte (Zé Roberto da Compensa). Marcola e outras doze lideranças do PCC estão, hoje, na penitenciária de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo, mantida pelo governo paulista — e não pelo governo federal.
O envio das lideranças do PCC para outros estados sempre foi um pleito da Polícia Civil e do Ministério Público rechaçado à exaustão pela cúpula dos governos tucanos. Oficialmente, o ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB) sempre argumentou que os presídios paulistas eram seguros o suficiente para manter os bandidos. Mas, nos bastidores, havia a preocupação de que as transferências desencadeassem represálias, como a ocorrida em 2006, em que a facção comandou uma série de atentados a policiais e agentes penitenciários. O que não se sabe é por que os criminosos fazem tanta questão de permanecer em presídios de São Paulo.
A ousadia da operação do PCC, a segunda tentativa de resgate frustrada em menos de seis meses, revela a um só tempo o enorme poder de fogo e o grau de apreensão da bandidagem. O plano seguiria o modelo de “sitiamento”, o mesmo aplicado em grandes assaltos a transportadoras de valores e agências bancárias em São Paulo. A ideia era a seguinte: um comboio com dezenas de veículos chegaria de surpresa pela madrugada às proximidades do presídio, e homens armados com fuzis se posicionariam em frente às delegacias e quartéis para impedir a saída dos policiais. Em seguida, caminhões e carros seriam queimados em ruas e rodovias, servindo como barricadas de fogo para liberar o caminho para a fuga. Por fim, um helicóptero estaria à disposição para apanhar os detentos, enquanto os guardas ficariam ocupados trocando tiros com os assaltantes do lado de fora e contendo a rebelião do lado de dentro. Segundo as investigações, os criminosos estariam posicionados na fronteira com o Paraguai esperando o aval para agir.
Quando descobriu indícios da investida por meio de conversas interceptadas, o governo paulista enviou 200 policiais militares de elite para o local, número que equivale a parte do efetivo da Rota e do Centro de Operações Especiais. Os homens passaram a ser treinados pelas Forças Armadas em Lins, a 270 quilômetros de Venceslau, para operar armas de guerra, como as metralhadoras Mag 7.62 e .50, emprestadas pelo Exército.
Desde o início de outubro, blitze começaram a ser feitas nas estradas de Presidente Venceslau, bloqueios foram armados na divisa de São Paulo com Mato Grosso do Sul, dois helicópteros sobrevoam diariamente o presídio e há pelo menos um blindado da Tropa de Choque, comprado do Exército israelense, de prontidão. O aeroporto de Presidente Venceslau foi interditado. “Estamos preparados para a guerra”, disse a VEJA o deputado Coronel Telhada (PP), que comandou a Rota por três anos e cujo filho, Rafael, integra a equipe em treinamento. Nas penitenciárias do estado impera um “silêncio estranho”, na avaliação de agentes ouvidos pela reportagem. Não há rodas de conversa na hora do banho de sol nem troca de bilhetes entre as celas. Para os agentes, o estado é de alerta máximo, no mesmo patamar de 2006.
O governador Márcio França (PSB) passou os últimos dias em contato permanente com o secretário de Segurança Pública, Mágino Alves, e com o secretário de Administração Penitenciária, Lourival Gomes, que foram avisados pelos investigadores de que o plano de fuga ainda não havia sido abortado pela facção. O sinal disso é que, na segunda-feira, dois drones foram vistos sobrevoando a região da penitenciária, sem que a polícia conseguisse abatê-los. Contudo, prestes a deixar o cargo para João Doria (PSDB), França decidiu não agir. Manterá as tropas em Presidente Venceslau até o final de seu mandato, deixando que seu sucessor tome a decisão que julgar mais adequada.
Tratando-se de Marcola, todo cuidado é pouco. Antes de virar líder de facção, fugiu duas vezes da prisão. Na última, em 1998, quando estava em liberdade, estruturou as rotas de tráfico que são usadas até hoje pelo PCC. Foi recapturado, mas o sistema que criou só prospera.
Publicado em VEJA de 14 de novembro de 2018, edição nº 2608