Como deputados e senadores se articulam para ampliar poderes do Congresso
É permanente a tensão entre Executivo e Legislativo, que, sentindo-se fortalecido, resolveu confrontar o Judiciário - em um teste de equilíbrio para o país
Desde o início de seu terceiro mandato, o presidente Lula enfrenta um problema de difícil solução. Como os partidos de esquerda elegeram bancadas minoritárias, ele precisa compor com legendas de centro e de direita para conseguir a aprovação de projetos considerados prioritários pelo governo. E como o chamado Centrão alcançou uma força inédita na gestão de Jair Bolsonaro, que delegou ao grupo o controle do Orçamento da União e de setores estratégicos da máquina pública, Lula é pressionado a pagar cada vez mais caro para fechar alianças no Congresso. O petista já fez uma série de concessões aos parlamentares, mas não na forma pedida por eles. Na prática, o presidente se esforça para mostrar que manda e que não se renderá, como fez o antecessor, enquanto o Centrão pressiona para arrancar o máximo de benesses. É permanente a tensão entre o Executivo e o Legislativo, que, sentindo-se fortalecido, resolveu confrontar também o Judiciário, em mais um teste para o equilíbrio, a harmonia e a independência entre os poderes.
A cruzada tem na linha de frente o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e conta com a ajuda do comandante da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa, senador Davi Alcolumbre, que foi seu antecessor e quer ser seu sucessor no cargo. Convencido de que o Judiciário tem ultrapassado a fronteira entre os poderes, Pacheco age em múltiplas frentes. No mês passado, ele apresentou uma proposta de emenda constitucional que criminaliza o porte e a posse de qualquer droga, em reação a um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que caminha para descriminalizar o porte de pequena quantidade de maconha para uso pessoal. Dos onze ministros da Corte, cinco votaram a favor da descriminalização e um contra antes de um pedido de vista suspender a análise do caso. Pacheco também já demonstrou incômodo com a possibilidade de o STF abrandar as regras sobre o aborto no Brasil e, por isso, pregou num evento em Paris, organizado pela Esfera Brasil, a imposição de limites à atuação do tribunal. Sua alegação — recorrente no Congresso — é que o Supremo tem usurpado a competência de legislar e exagerado no chamado ativismo judicial. “Não há mínima possibilidade de permitir ao Supremo ou qualquer instância do Judiciário que formate as regras e as leis do país porque isso cabe ao Legislativo.”
Presente ao mesmo evento, o ministro Gilmar Mendes, decano do STF, reagiu de pronto e, rememorando a leniência das cúpulas da Câmara e do Senado com a escalada autoritária de Bolsonaro, respondeu, colocando a Corte no papel de fiador da democracia: “Se hoje tivemos a eleição do presidente Lula, foi graças ao STF”. Não é um despropósito debater ativismo judicial e respeito às competências constitucionais, mas a ofensiva em curso não parece se restringir apenas a isso. Nos últimos dias, Pacheco apoiou o debate de medidas como a adoção de mandatos fixos para os ministros do STF. Sob a batuta dele e de Alcolumbre, a CCJ aprovou a toque de caixa um projeto que restringe as decisões monocráticas e os pedidos de vista no Supremo. Essas movimentações também têm como catalisadores interesses políticos. Pacheco é considerado pré-candidato ao governo de Minas Gerais, estado em que Lula venceu Bolsonaro no segundo turno por menos de 50 000 votos e é governado pelo direitista Romeu Zema. Considerado um político de centro, ele precisa, segundo seus próprios aliados, acenar aos bolsonaristas mineiros, que, como os demais integrantes da grei, consideram o Supremo um alvo preferencial. O presidente do Senado nega que haja uma motivação eleitoral em suas ações. “Qualquer instabilidade é muito ruim para o país. Tenho senso de responsabilidade e não me pautaria por um viés eleitoral.” Alcolumbre também pode se beneficiar da estratégia de pressão ao Supremo porque, dentro do Senado, os grandes opositores da Corte são bolsonaristas, com os quais ele conta para voltar ao comando da Casa.
Os planos de Alcolumbre são bem mais ambiciosos do que os de Pacheco. Padrinho de indicações diversas no governo Lula, de ministro de Estado a chefes de estatais, o senador tem segurado a tramitação de indicações do presidente para diversos cargos, inclusive para ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ). No Senado, diz-se que ao manejar a pauta da CCJ, a quem cabe aprovar as indicações, Alcolumbre tenta aumentar seu cacife para ter voz nas escolhas do futuro procurador-geral da República e do próximo ministro do Supremo. No governo Bolsonaro, ele fez movimento parecido e travou a indicação de André Mendonça para o STF por mais de quatro meses. Apesar das movimentações no Senado, integrantes do Executivo e do Judiciário avaliam que medidas para mudar o STF ou limitar a sua atuação dificilmente prosperarão. Elas serviriam mais como um instrumento de pressão e, mesmo que aprovadas pelos senadores, provavelmente seriam rechaçadas pela Câmara.
Presidente da Casa, o deputado Arthur Lira tem boa relação com o STF, que recentemente, por meio de uma decisão do ministro Gilmar Mendes, suspendeu uma investigação sensível ao parlamentar. Hoje, o alvo preferencial dos deputados é mesmo o Executivo. Eles exigem a distribuição de cargos, especialmente na Caixa e na Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Outra prioridade é ampliar a quantidade de recursos a que os parlamentares têm direito de indicar no Orçamento da União. Como parte de sua capitulação ao Centrão, Bolsonaro presenteou os congressistas com o chamado orçamento secreto, que atingiu 20 bilhões de reais em apenas um ano. No governo Lula, na esteira do veto do STF ao orçamento secreto, esses valores foram divididos em duas partes — ficando 10 bilhões de reais para deputados e senadores e 10 bilhões de reais para os ministérios.
Com a crise de abstinência, como gostam de ironizar os articuladores políticos do governo, os parlamentares querem tomar de volta os 10 bilhões de reais disponíveis para os ministérios. Mais: planejam aprovar uma regra para obrigar o Planalto a seguir um calendário de desembolso das emendas, o que não existe atualmente. Preocupado em equilibrar as contas públicas, o governo não quer aumentar a fatia dos congressistas no Orçamento, que é de pouco mais de 36 bilhões de reais em 2023. Ainda é cedo para dizer quem ganhará essa queda de braço, mas os deputados acham que levarão a melhor, já que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, depende da aprovação de uma série de projetos para aumentar a arrecadação. O Centrão está disposto a ajudá-lo desde que, como de costume, possa abocanhar uma fatia do bolo.
No badalado livro Como as Democracias Morrem, os autores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt falam da importância do respeito ao que chamam de “reserva institucional”. É uma espécie de apelo à contenção, para que as autoridades não abusem de suas respectivas prerrogativas para atingir objetivos pessoais e, na outra ponta, enfraquecer o próprio regime democrático. Um presidente da Câmara, por exemplo, não deve abusar de seu poder de abrir processos de impeachment para chantagear o mandatário de turno, como aconteceu no passado, ou viabilizar uma conspiração política. Um grupo majoritário no Congresso não deve aprovar leis a fim de enfraquecer seus adversários, como ocorreu recentemente nos Estados Unidos. E um juiz — de primeira instância ou da Suprema Corte — não deve cometer arbitrariedades, mesmo quando não aparentam ser o que são, com o objetivo de perseguir ou favorecer determinados atores. Os autores têm razão. Um pouco mais de ponderação e entendimento na Praça dos Três Poderes faria muito bem ao país.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864