Como a internacionalização do PCC aumentou o poder de fogo e a ousadia do grupo
Exemplo mais recente disso foi o assassinato de um delator da Justiça à luz do dia, no maior aeroporto do país
Criado em 1993 numa cadeia do interior de São Paulo como uma espécie de sindicato para defender os direitos dos detentos, o Primeiro Comando da Capital (PCC) logo mostrou força, com a conquista de enorme influência sobre o sistema carcerário. Pouco mais de uma década depois, o grupo investiu para subir de patamar, entrando fortemente no tráfico internacional de entorpecentes. Com o imenso volume de recursos arrecadados com o envio de cocaína para o exterior, a facção passou a atuar também em outros segmentos, desde criptomoedas a contratos com o poder público, criando uma complexa rede para lavagem de dinheiro do crime. Hoje a organização possui braços em diversos países e tem faturamento estimado por especialistas em mais de 1,2 bilhão de dólares por ano.
A transformação do PCC numa verdadeira multinacional do crime aumentou também o poder de fogo e o nível de ousadia de seus integrantes, numa escala inédita. Exemplo mais recente disso ocorreu no último dia 8, quando o empresário Antonio Vinicius Lopes Gritzbach foi assassinado em plena luz do dia no aeroporto de Guarulhos, o mais movimentado do país. Atingido na área de desembarque por dez tiros de fuzis disparados por dois homens encapuzados, Gritzbach era parte da complexa engrenagem montada para lavar dinheiro do PCC. Atuava principalmente na negociação de criptomoedas e imóveis de alto padrão. Em uma das transações, ele teria se comprometido a lavar 100 milhões de reais para um traficante do grupo, Anselmo Bechelli Santa Fausta, o Cara Preta. Suspeita-se que o empresário tenha embolsado o dinheiro pelo serviço, mas não cumpriu o acordo. Por isso, segundo o Ministério Público de São Paulo, teria encomendado a morte de Cara Preta e de seu motorista para não ter de quitar o débito. Jurado pela facção e investigado por lavagem de dinheiro, Gritzbach passou a colaborar com a Justiça. Delatou não só antigos comparsas e seus esquemas como também denunciou corrupção de policiais civis de ao menos dois departamentos e duas delegacias. Ou seja, virou alvo de ambos os lados da moeda. Até a quinta passada, 14, a força-tarefa criada pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo ainda tateava em busca de maiores pistas para elucidar o caso.
A ousadia crescente do PCC também se refletiu na sofisticação de suas operações. No início do mês, a PF deflagrou ação para desbaratar um esquema em que a organização utilizava mergulhadores para grudar cocaína nos cascos dos navios ancorados no Porto de Santos, a principal via de saída da droga para o exterior. Durante as investigações, a PF identificou ao menos sete momentos em que foi enviada mais de 1 tonelada ao mercado europeu dessa forma, uma de tantas outras adotadas para driblar os órgãos de fiscalização.
Com o enorme volume de dinheiro arrecadado, a organização também diversificou as formas de inserção desses recursos no mercado formal. Os órgãos de investigação já identificaram investimentos em uma gama enorme de negócios, como bancos digitais, fintechs e empresas de administração de carreira de artistas e de jogadores de futebol. Há, ainda, forte introdução de integrantes da facção, ou laranjas, em empresas com contratos diretos com a administração pública. O MP de São Paulo já identificou a influência da facção nas empresas que operam o sistema de ônibus da capital, além de contratos de serviços de saúde e limpeza urbana em municípios como Arujá, Suzano, São Vicente, Ferraz de Vasconcelos e Cubatão, entre outros.
No campo mais recente de tentativa de aumentar os seus tentáculos, o PCC voltou-se à política. Em outubro, durante encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ao falar sobre a campanha eleitoral em curso, o chefe do Centro de Inteligência da PM paulista, coronel Pedro Lopes, disse que essa influência era maior do que se imaginava. “Não dá para falar se são 100, 200 municípios, mas tem vários com indícios palpáveis de alguma movimentação importante do tráfico”, afirmou. Em quase oitenta operações na semana do primeiro turno das eleições, a Polícia Federal apreendeu 49,5 milhões de reais em espécie, oriundos de desvios do fundo eleitoral e do patrocínio ilegal de campanha, em boa parte de organizações criminosas, para aliciar eleitores. Uma vez empossado, o político passa a ser um aliado para a complexa engrenagem de lavagem de dinheiro, já que as prefeituras gerem serviços caros como transporte público e limpeza urbana. “A lealdade dos gestores municipais ao facilitarem a contratação de empresas indicadas pela facção é um dos aspectos que fazem com que o PCC possa hoje ser classificado como uma máfia”, diz Mario Sarrubbo, secretário nacional de Segurança Pública.
Apesar das semelhanças, o PCC também tem particularidades em relação às tradicionais máfias. Ao contrário das organizações italianas que concentram a operação dos crimes na figura de um capo, a facção consegue funcionar mesmo com os chefes atrás das grades, como ocorre atualmente (confira o quadro). A alta cúpula encarcerada ainda dá a palavra final e consegue, por meio de advogados, alguma comunicação com as ruas. O PCC se organiza em uma estrutura em rede, dividida em setores chamados de sintonias, que foi readequada após a ida dos chefões para presídios federais. A Sintonia Restrita, uma espécie de setor de inteligência, responsável pela perseguição de agentes públicos, responde apenas à cúpula, chamada de Sintonia Final. Há ainda setores como a Sintonia Final da Rua, composta pelos líderes que não estão presos e cuidam do dia a dia do crime, e a Sintonia dos Gravatas, responsável pela assessoria jurídica e pelo trânsito de informações entre as ruas e o presídio.
De acordo com os especialistas, o PCC hoje deixou de ser um problema apenas para o Brasil. Para muitos deles, o grupo se tornou o principal ator na logística do tráfico de drogas no mundo. Das fronteiras com a Colômbia, a Bolívia e o Peru, únicos produtores de cocaína do planeta, a facção busca o entorpecente e se vale da infiltração em portos e aeroportos para escoar a droga em direção a Europa, Ásia e África. O PCC constituiu, ao menos, 21 fluxos diferentes que circulam drogas, mas também armas, cigarros, madeira, veículos, minério e combustíveis. Atualmente, mais da metade da receita da facção é obtida com a internacionalização de suas operações. Estima-se que o grupo já atue de alguma forma em mais de vinte países.
O PCC nasceu, se estruturou, cresceu e enriqueceu ocupando as brechas da lei. Foi ignorado quando surgiu dentro do sistema carcerário, época em que as autoridades públicas evitaram citar a sigla para não referendar sua existência. A estrutura em rede se fortaleceu no momento em que os órgãos de investigação se concentravam em operações pontuais de apreensão de drogas, sem olhar o todo. E se consolidou no mercado internacional de drogas aproveitando-se dos limites de competência territorial das autoridades brasileiras. Em alguns momentos, a facção foi beneficiada por decisões questionáveis da Justiça, como a que soltou André do Rap, um dos maiores traficantes de drogas do país. Em 2020, o então ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello acolheu o argumento de que André estava preso preventivamente por um tempo muito longo, sem condenação transitada em julgado, e concedeu habeas corpus. A decisão foi revogada horas depois, mas já era tarde. O traficante sumiu e, quatro anos depois, continua foragido. “Falhamos como Estado”, reconhece o promotor de Justiça Lincoln Gakiya, que há mais de vinte anos investiga o PCC. “Não estou criticando ninguém, todo mundo está trabalhando muito, claro, mas de maneira não integrada e desestruturada”, avalia.
A expansão do PCC dentro e para além das fronteiras nacionais mostra o tamanho do desafio em dar respostas satisfatórias ao grave problema de segurança. No caso do assassinato no aeroporto de Guarulhos, ainda restam dúvidas não só sobre a autoria e a motivação, mas também a respeito da participação de PMs que faziam escolta particular do empresário morto e o motivo pelo qual ele não estava sendo monitorado com cuidado, uma vez que se encontrava em um processo de colaboração premiada. A cada dia que passa, enquanto a sociedade cobra ações mais efetivas de combate ao tráfico e à violência resultante dele, o poder do PCC só cresce.
Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2024, edição nº 2919