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Cientista político americano cria manual para ditadores

Autor de 'The Dictator's Handbook', Bruce Bueno de Mesquita diz que o interesse pessoal, e não o bem comum, é o que move um governante

Por Carlos Graieb 13 jan 2012, 22h53

Xadrez, dizia o humorista Millôr Fernandes, nada mais é do que “um jogo chinês que ensina a jogar xadrez”. Da mesma forma, para os cientistas políticos americanos Bruce Bueno de Mesquita e Alastair Smith a política “nada mais é do que um jogo praticado pelos governantes”. Há 20 anos, os dois vêm usando as ferramentas da estatística, do cálculo e da teoria dos jogos para registrar os padrões de comportamento e – em uma palavra – as regras que comandam a conquista e o exercício do poder. Autores de alguns tijolões acadêmicos, eles acabam de publicar um volume dirigido aos leigos para expor os seus achados. O título é provocador: The Dictator’s Handbook (O Manual do Ditador). Segundo o livro, quem deseja entender – ou mesmo prever – as ações de um dirigente em qualquer tipo de organização, inclusive as empresas, deve ter em mente uns poucos fatos. Primeiro, que o interesse pessoal, e não o bem comum, é mesmo o motor principal das ações de um governante, e deixar de levar isso em conta conduz a conclusões equivocadas. Em segundo lugar, que o papel das ideologias é muito menos relevante do que se costuma pensar, ao passo que fatos em geral pouco realçados pelos analistas – o tamanho do eleitorado que permite a um líder chegar ao poder, e o tamanho da coalizão que lhe permite exercê-lo – são na verdade a chave para desvendar quase todos os segredos da política. “Não é errado dizer que nossa abordagem resulta num retrato cínico, ou seja, sem ilusões, da realidade”, diz Bueno de Mesquita. “Mas testamos nossas hipóteses há muito tempo, e acreditamos ter formulado o núcleo de uma teoria geral da política.” Leia a seguir trechos da entrevista que o professor da Universidade de Nova York concedeu ao site de VEJA. Como alguém pode tornar-se um ditador? Em primeiro lugar, ninguém, nem mesmo os maiores tiranos, tem poder absoluto, a ponto de não depender de um certo número de apoiadores. O tamanho desse grupo, que chamamos no livro de coalizão vencedora, é o principal fator que distingue os regimes fechados dos regimes abertos. Se o grupo de pessoas de quem você depende para se manter no poder for pequeno, então lhe será possível – e na verdade bem mais eficaz – governar oferecendo recompensas somente a quem interessa, praticando e aceitando a corrupção. Quanto maior for esse grupo, mais difícil será “comprar” todos os que podem influir no seu futuro político, e então começa a fazer sentido para você investir em políticas públicas. Essa é a verdade fundamental – mas há uma poucas regras complementares que os aspirantes a ditador precisam ter em mente. (Consulte a lista abaixo para conhecer os cinco mandamentos do Manual dos Ditadores) Onde as pessoas mais erram ao pensar sobre política? Ao escolher um governante por causa de suas belas palavras, de suas “qualidades” pessoais, de suas idiossincrasias. Quem entra no jogo da política está preocupado, antes de mais nada, com sua própria sobrevivência e com seu próprio bem estar, mais do que com o bem estar das pessoas a quem representa. Por isso o mais importante são as instituições. Quando as instituições determinam que o governante precisa do apoio de muitos não só para chegar, mas também para manter-se no poder, então aumentam as chances de que políticas que beneficiam a todos sejam implementadas. Os regimes democráticos também têm as suas falhas. Quanto mais democrático um país, mais imediatistas serão os seus líderes, pois o “longo prazo” é apenas a próxima eleição. Mas isso não elimina o fato básico de que, nas democracias, é do interesse do líder escolher o que também é melhor para as pessoas. É o empuxo das instituições que nos permite ser otimistas em política, e não a bondade dos candidatos a um cargo público. Esse não é um modo um tanto cínico de olhar a “natureza humana”? Ah, com certeza. Mas veja que eu ainda pude falar em otimismo. E o fato de os pressupostos da teoria serem “cínicos” não a torna menos verdadeira. Já usamos ferramentas analíticas há 20 anos para provar que ela faz sentido. Usando cálculo e estatística testamos quase todas as partes da teoria em inúmeros países, no mínimo com dados dos últimos vinte anos, e sempre que possível retrocedendo a vários séculos. Nós aplicamos nossas idéias a Roma, à Grécia, aos povos da Bíblia – e as coisas se encaixam. Usamos cálculo para identificar quais são os níveis ótimos de cobrança de impostos, oferta de bens públicos como educação e saúde, tolerância à corrupção e clientelismo, e assim por diante, levando em conta nossos fatores básicos, como o tamanho do eleitorado e da coalizão vencedora. O Brasil discute atualmente a mudança em seu sistema de votação. Qual a influência dos sistemas de voto na vida de um país? Grande. O voto proporcional, por exemplo, leva à existência de muitos partidos, o que pode dar poder desproporcional a legendas pequenas, das quais pode depender a formação de uma maioria. Vemos isso o tempo todo em Israel, onde partidos religiosos nanicos obrigam quem quer que esteja no poder a levar em conta suas demandas. Por isso é tão difícil, por exemplo, barrar os assentamentos em territórios ocupados e fazer avanços significativos na direção da paz com os Palestinos. O voto distrital tem efeitos inversos. A longo prazo, costuma levar a um sistema bipartidário. Por isso é, sim, importante, discutir sistemas de votação – embora nenhum deles seja imune a defeitos e manipulações. Gosto de citar o caso da Tanzânia, um país que realiza eleições livres, regulares e limpas – que sempre têm o mesmo partido, o CCM, como vencedor. Isso acontece porque a Tanzânia tem 17 partidos políticos, todos alimentados com recursos públicos. Nesse cenário de fragmentação, o CCM consegue vencer com uma proporção relativamente baixa de votos – e ainda pode direcionar dinheiro para os partidos que resolvam fazer parte da sua coalizão. Creio que algo parecido está prestes a acontecer no Egito. A Irmandade Muçulmana, cuja representatividade é de aproximadamente 20% da população, parece ter descoberto o segredo dos sistemas eleitorais – ou seja, que há fórmulas de votação que lhe permitirão tomar conta do poder sem que para isso tenham de recorrer aos mecanismos clássicos de uma ditadura. O ano de 2011 foi ruim para muitos ditadores. Por que Kadafi, por exemplo, caiu? Por que, nos nossos termos “cínicos”, foi ingênuo e cometeu erros. Em 2005 a Freedom House, uma organização que monitora as liberdades civis no mundo, pôs a Líbia no fim do seu ranking de liberdade de imprensa entre os países da mesma região. Em 2010, a situação havia se invertido: só o Egito tinha uma imprensa mais livre na vizinhança. Isso permitiu que as pessoas se organizassem. Em segundo lugar, os líbios têm, em média, dois anos mais de escolaridade do que seus vizinhos. Kadafi educou sua população mais do que seria prudente para os seus próprios interesses. Em terceiro lugar, ele tentou mudar sua imagem nos últimos seis ou sete anos, reduzindo o nível de opressão política. Ele permitiu que as pessoas se organizassem e reduziu o custo de se opor ao governo. São erros graves! E deu no que deu. Bashir al Assad, da Síria, conseguirá se manter no poder? Dificilmente. O seu problema é clássico. Como tantos ditadores, ele depauperou a economia do país e agora está sem dinheiro para comprar a lealdade do exército. Ele ganhou tempo porque recebeu recursos do Irã, do Iraque e da Venezuela. Foram cinco bilhões de dólares dos dois primeiros países, além de promessas de comércio ampliado em 2012, e investimentos venezuelanos numa refinaria de petróleo. Essa injeção de dinheiro permitiu que Assad continuasse a pagar os militares e lhe deu alento num cenário de rebelião. O problema é que Irã, Iraque e Venezuela têm sérias crises internas e dificilmente vão manter a ajuda a Assad. Se o fluxo de dinheiro cessar, as defecções no regime, que já vêm acontecendo, vão ganhar impulso. Assad está encalacrado. Se tentar fazer reformas profundas para aplacar as ruas, seu apoiadores diretos vão querer matá-lo – pois o dinheiro sairá do bolso deles. Assim, o mais provável é que ele esteja engordando uma conta secreta na Suíça e estudando a sua melhor rota de fuga. O que a sucessão na Coreia do Norte ensina sobre as ditaduras? Assim como os reis descobriram no passado as virtudes – para si próprios – dos sistemas dinásticos, os ditadores descobriram a lógica da hereditariedade. A chave para a sobrevivência de um regime ditatorial num momento de transição é, literalmente, a chave do cofre. O sucessor precisa saber onde está o dinheiro para comprar sustentação ao seu mando (entre os militares em primeiro lugar). A transição hereditária reduz muito esse problema. Não há dúvida de que Kim Jong Il informou Kim Jong Un sobre onde estava o dinheiro – ou seja, deu-lhe de mão beijada a ferramenta indispensável para manter a lealdade de uma coalizão que, de outra forma, poderia querer derrubá-lo. O mesmo ocorreu na Síria. A lição é que “ditaduras dinásticas” são uma das maneiras mais eficientes de perpetuar um regime. Há quem elogie ditaduras como a de Fidel Castro por suas políticas de saúde ou educação. Isso faz algum sentido? Não, isso não faz sentido. Quanto mais longa uma ditadura, maior será a erosão dos indicadores sociais. Sim, é verdade que Cuba tem hoje em dia taxas baixas de mortalidade infantil. O “problema” é que em números absolutos as taxas de mortalidade melhoraram em quase todos os países do mundo nas últimas décadas, dados os avanços na área da medicina. E quando você vai consultar as estatísticas, percebe que antes de Castro a situação relativa de Cuba era muito melhor – o país estava à frente da França e da Bélgica nesse quesito – e hoje está muito atrás. Falemos agora de educação. A taxa de alfabetização de Cuba, como a da Coreia do Norte, está próxima de 100%. Mas por que um ditador não quereria uma população alfabetizada? As pessoas precisam saber ler instruções. Quando falamos de política educacional, o que precisa ser observado são os dados do ensino médio e superior. Há vários rankings de universidades internacionais. Se você os analisar, verá que Cuba não consta deles. Na verdade, os únicos países não-democráticos que têm universidades entre as melhores 200 do mundo são China e Singapura. E são pouquíssimas universidades chinesas – se não me engano, só 3. A Rússia, com toda a sua notável tradição cultural, não tem nenhuma universidade nesses rankings. Essa foi a herança do regime soviético. Por que o que os ditadores não querem são pessoas capazes de produzir conhecimento indepentemente. Existe essa mitologia sobre o regime de Castro. Mas pesquise os dados reais e você verá que, comparativamente, a população estava melhor antes dele. Isso não é ideologia, não é propaganda. São estatísticas da ONU. Para que serve o jargão da esquerda e da direita, das ideologias? Para as pessoas se orientarem na leitura dos jornais, mas não para explicar a realidade. Veja a campanha presidencial americana. Os republicanos falam de mercado livre e governo limitado, democratas falam de seguridade social e mais impostos, e assim por diante. Olho para essa conversa e penso: os republicanos querem cortar benefícios daqueles que, inconvenientemente, votam nos democratas, e vice-versa. Um político quer tirar recompensas de quem se opõe a ele, e dá-las a quem o apoia. Não precisamos de ideologia para explicar esse comportamento. Dos pensadores clássicos da política, quais, a seu ver, se aproximaram mais da verdade? Maquiavel e James Maddison. Hobbes, Montesquieu, Rousseau, Platão, Aristóteles – todos tiveram intuições geniais, mas ficaram longe de formular uma teoria geral da política, que é o que nós pretendemos oferecer. Repito: não estou diminuindo a genialidade desses pensadores, não julgo que sou mais inteligente que eles. Mas temos muito mais informação do que eles tinham, e ferramentas analíticas muito mais poderosas. Ora, Maquiavel não podia usar cálculo… É curioso como as pessoas se ofendem com isso. Na Física, não há problema em dizer que Newton, apesar de seu gênio, só foi capaz de avançar até certo ponto. As pessoas estão prontas a admitir que o uso de ferramentas matemáticas que vieram depois faz a diferença. Mas quando se estuda política dizer essas coisas ainda soa como heresia.

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