Cartas inéditas expõem as angústias e reflexões de dom Pedro II, o imperador imberbe
O bicentenário de nascimento do 'magnânimo', como foi apelidado, despontam novas camadas do homem por trás do cetro

Há um modo fascinante de iluminar a vida de figuras históricas, à margem dos grandes eventos e das figuras públicas: olhar para a intimidade de pessoas, afinal, de carne e osso. Um dos mais celebrados personagens da aventura brasileira, dom Pedro II, o último imperador do Brasil, responsável por um dos períodos mais longevos de estabilidade política, entre 1831 e 1889, ao longo de 58 anos, foi sempre aplaudido pelos passos expostos ao escrutínio dos cidadãos. Tendo sido feito monarca aos 5 anos, com a abdicação do pai, de volta a Portugal, cedo conviveu com as intrigas palacianas e cedo adaptou-se aos deveres e obrigações do posto que lhe caiu no colo como se fosse brinquedo de criança. Mas não. Entre a entronização e o término corajoso de seu mandato, com o fim da monarquia, forjou uma personalidade forte, avessa à corrupção e ao desrespeito da legislação. Era o que a nação percebia, no cotidiano do século XIX, e o que os livros escolares entregaram.
Agora, com uma relevante efeméride, o bicentenário de nascimento do “magnânimo”, como foi apelidado, despontam novas camadas do homem por trás do cetro, o adulto forjado na meninice. O escritor e pesquisador Paulo Rezzutti acaba de lançar versão revista e ampliada de um pequeno clássico, D. Pedro II — A História Não Contada (Editora Record), com cartas que revelam facetas inéditas da formação do governante — o cotidiano das coxias a construir o poder ou, como na frase do poeta William Wordsworth, depois citado por Machado de Assis: “O menino é o pai do homem”. As missivas recolhidas em arquivos de Portugal e da Áustria mostram um garoto introspectivo, desconfiado e solitário, que se refugiava nos estudos e em confissões a raros confidentes. “A correspondência mostra que dom Pedro II, na infância, já entendia a diferença entre a vida oficial e a vida real”, diz Rezzutti.

Ele intuía os dois mundos, sim, mas, ao escrever para membros da família, tinha o cuidado de não soar coloquial em demasia. De uma epístola para o avô, Francisco I da Áustria: “Meu mui querido vovô. Acabo de escrever a Vossa Majestade Imperial uma carta que o próprio Senhor Lima, Presidente da Regência, escreveu, e eu não escrevi com a caligrafia dele; mas as cartas de Estado não são suficientes para o desejo que tenho de apresentar pessoalmente a Vossa Majestade Imperial a minha homenagem, o meu respeito e a minha ternura filial”.
É evidente, no mergulho dentro do quarto de dom Pedro II, por meio do que escrevia, a sensação de isolamento. O cunhado, dom Fernando II, casado com sua irmã, Maria II, rainha de Portugal, tornou-se um dos poucos interlocutores com quem o monarca se sentia à vontade para desabafar. “Quiseram que eu tivesse 18 anos aos 14”, anotou, fazendo referência ao golpe da maioridade e resumindo o peso da responsabilidade imposta desde a adolescência. As cartas também revelam um homem desconfiado das pessoas. “Sou segredista; e tenho sido muito acusado de dissimulação, quando da minha parte não há senão reservas; mas pouco me importo com tais ditos; porque partem geralmente de pessoas que procuram as nossas confidências como meio de ganharem a influência que, as mais vezes, não merecem pelas suas qualidades.” Um de seus “segredos”: do ponto de vista oficial nunca foi abertamente antiescravidão, mas, na clausura, sim, daí as articulações que alinhavou para dar fim à chaga de todas as chagas.
A evidente timidez era estratégia de sobrevivência. “Ele sabia viver cercado de gente que queria favores ou poder e, por isso, evitava se abrir”, diz Rezzutti. O resultado desse comportamento, agora esmiuçado: distanciamento da família, em especial da filha, a princesa Isabel, que reclamava do mutismo do pai. Ele agora, enfim, fala.
Publicado em VEJA de 4 de abril de 2025, edição nº 2938