Carta ao Leitor: Uma ideia de nação
No 200º aniversário de sua independência, o Brasil merecia uma relação menos histérica com sua própria história

As efemérides servem aos países como cronômetro da passagem do tempo, registro dos avanços históricos a caminho da soberania e sobretudo como régua para a democracia. Olhar para o passado é um modo de entender o presente e pavimentar o futuro. Calhou, infelizmente, de duas celebrações de aniversário da independência do Brasil coincidirem em travessias ruins de nosso cotidiano político. Em 1972, nas louvações ao sesquicentenário, a ditadura militar presidida por Emílio Garrastazu Médici transformou dom Pedro I em símbolo do que ele não fora: um personagem de caráter militarista, um mito fardado. Agora, aos 200 anos do grito às margens do Ipiranga, a data coincide com um momento prenhe do desnecessário embate entre os poderes, alimentado pelo presidente Jair Bolsonaro em seu mau hábito de atacar frequente e verbalmente os ministros do Supremo Tribunal Federal.
O que deveria ser uma festa cívica contra o absolutismo do passado e a favor da liberdade de sempre — lembrete da colônia enfim libertada da metrópole — virou mote para que os seguidores de Bolsonaro expressem o apoio à reeleição cavalgando em ideias absurdas. Continuam a espernear, ridiculamente, contra uma suposta falta de lisura das eleições e das urnas eletrônicas. Debaixo do lema “Eleições limpas já — supremo é o povo” estão previstos atos de explícita campanha eleitoral em diversas cidades brasileiras. No Rio de Janeiro, o desfile foi transferido da Avenida Presidente Vargas, onde sempre ocorreu, para a Praia de Copacabana, tradicional reduto bolsonarista, e que no ano passado foi palco de bravatas. Ali, exibições das Forças Armadas devem se confundir com motociatas e gritos de ordem proferidos do alto de dez carros de som. Tomara que a manifestação seja pacífica e alegre, sem arroubos verbais nem provocações.

No 200º aniversário de sua independência, o Brasil merecia uma relação menos histérica com sua própria história, um olhar a um só tempo carinhoso e rigoroso, como faz VEJA em edição especial, disponível no site a partir de sábado, 3. Brilhantemente editadas pelo redator-chefe Fábio Altman, as 66 páginas sobre aquele setembro de 1822 transportam o leitor ao país de dois séculos atrás. É uma viagem espetacular no tempo e um modo de entender o que se passou na Corte portuguesa, no Paço Imperial no Rio de Janeiro, em São Paulo e na Bahia, o que pensavam o príncipe regente, a imperatriz Maria Leopoldina e sobretudo José Bonifácio de Andrada e Silva, o nosso founding father. Escreveu Bonifácio, ainda em 1817, e que deveria ecoar aos ouvidos do presidente Bolsonaro e dos que o cercam, em defesa do republicanismo: “Estou capacitado de que os grandes projetos devem ser concebidos e executados por um só homem, e examinados por muitos; de outro modo, desvairam as opiniões, nascem as disputas e rivalidades; e vem faltar aquele centro comum de força e unidade, que tão necessário é em tudo”. Bonifácio defendia o papel fundamental da liderança de dom Pedro — mas sabia que o Brasil só cresceria democraticamente, no início como uma monarquia constitucional, se ao redor do príncipe de espada em punho brotasse uma ideia de nação.
Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805