Carta ao Leitor: Um duelo necessário
O Brasil precisa se desarmar com urgência. Afinal de contas, nada de bom pode vir do cano de uma pistola ou de um fuzil

Em seu primeiro discurso público depois de eleito, Lula beirou a irresponsabilidade ao dizer com todas as letras que as promessas de campanha no campo social impõem um furo no teto das contas públicas. “Por que as pessoas são levadas a sofrer para garantir a tal estabilidade fiscal?”, indagou. Lula se esquece — ou finge não saber — que a população, sobretudo a mais pobre, tende a sofrer ainda mais sem estabilidade fiscal. A declaração foi mal recebida inclusive por economistas que trabalham na transição até a posse. Cabe indagar se foi apenas retórica entusiasmada, ou se de fato é indício da política econômica que o governo do PT pretende implementar. No ruído provocado em torno da desastrada fala de Lula, mal se ouviu um outro passo. Esse, sim, amplamente positivo e louvável. No mesmo discurso, ao criticar a política armamentista implementada por Jair Bolsonaro, ele disparou: “Precisamos de mais livros e menos armas”.
E não parou por aí. Na reunião com ministros do STF, Lula deixou claro que um de seus primeiros atos depois da posse será revogar boa parte das 42 normas que Bolsonaro assinou sobre armas, especialmente fuzis e carabinas, para facilitação da obtenção de licenças e afrouxamento da fiscalização do Exército. Por meio de sucessivas canetadas, o atual presidente escancarou — sobretudo — o acesso aos chamados CACs (caçadores, atiradores e colecionadores). Com as mudanças de regras, o número de CACs cresceu de 117 000 em 2018 para mais de 673 000 até junho de 2022. As armas registradas por esse grupo também saltaram: eram 350 000, agora são mais de 1 milhão. A média de liberações chegou a 705 por dia — uma a cada dois minutos. A figura dos CACs serviu de atalho para Bolsonaro facilitar a circulação de armamento entre civis, com a falácia de que todo cidadão tem o direito de se proteger de criminosos. Não é bem assim. Mais armas significam também mais arsenal para o crime, com desvios e roubos, como já se demonstrou. Rapidamente, aliás, o mercado legal alimentou a ilegalidade no país.
Como a reversão dessas medidas depende apenas do Executivo, sem necessidade de maioria parlamentar, é dado como certo que Lula abrirá o ano com esse movimento — e assim comprará briga no Congresso com a ruidosa bancada da bala, composta de 86 parlamentares, 21% a mais do que na atual legislatura, como mostra levantamento feito por VEJA. Uma das ideias que circularam nas hostes do futuro governo, como forma de compensação e incentivo, é o oferecimento de algum tipo de “crédito tributário” para quem devolver um revólver ou uma pistola. Imagina-se, também, a montagem de um esquema que facilite o rastreio de cartuchos e torne obrigatória a marcação de toda munição vendida no país.
O gesto de Lula, com o “revogaço”, tem o objetivo de estabelecer a ordem ao ponto instituído em 2005 — naquele ano, em referendo, 64% dos brasileiros responderam “não” a uma pergunta direta: “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”. Bolsonaro, contudo, reescreveu a história, a seu modo, autorizando acesso desenfreado como nunca — usando como garoto-propaganda a si mesmo, com o infame gesto da “arminha”, o que culminou nas cenas inaceitáveis da deputada federal reeleita Carla Zambelli com arma em punho a correr atrás de um homem negro que a criticava, nas ruas de São Paulo, na véspera da eleição. Sem falar na reação destrambelhada do deputado Roberto Jefferson ao receber policiais federais em sua casa com granadas e tiros de fuzil. O Brasil precisa se desarmar com urgência. Afinal de contas, nada de bom pode vir do cano de uma pistola ou de um fuzil.
Publicado em VEJA de 23 de novembro de 2022, edição nº 2816