Carta ao Leitor: Mais longe do povo
Existe um imenso ruído entre aquilo que o PT diz e os anseios do povo. O brasileiro, goste-se ou não, está mais conservador
Entre as qualidades do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, reconhecidas até pelos seus adversários, sempre esteve a habilidade de ajustar seu discurso à plateia de ouvintes do momento. A capacidade quase hipnótica de seduzir a audiência foi, aliás, uma das explicações para o sucesso do menino que saiu em um pau de arara do interior de Pernambuco, virou metalúrgico e sagrou-se por três vezes presidente da República. Traduzir o que as pessoas pensam, canalizar os desejos das massas numa linguagem simples e direta, além de saber ouvir opiniões divergentes e traçar uma linha reta, fez parte de toda a sua bem-sucedida trajetória. Não à toa, Lula transformou-se no maior líder da esquerda brasileira, na voz que todos os seus comandados seguem, no oráculo do bem e do mal dentro do Partido dos Trabalhadores.
A questão é que nem sempre a resposta correta de ontem continua a valer nos dias de hoje. No pleito que se realizará neste fim de semana, os eleitores brasileiros — especialmente os de classes menos favorecidas — estão mandando um recado direto ao presidente e a toda a esquerda brasileira: eles querem algo novo, diferente das promessas que lhes agradavam no passado. Evidentemente, os assuntos municipais permeiam as disputas em todo o país. Mas, quando se buscam as preferências do eleitorado em relação aos grandes temas, como mostra um estudo inédito em reportagem da edição, fica claro que houve uma inflexão nessa parcela de eleitores. Eles já não valorizam tanto o emprego com carteira assinada, consideram a distribuição de bolsas-auxílio um direito adquirido e pouco se deixam atrair pelos apelos de programas como Minha Casa, Minha Vida.
Certamente influenciada pelo avanço das igrejas evangélicas, tanto pela questão comportamental como pelo conceito da ética do trabalho, uma camada significativa de pessoas menos favorecidas passou a defender o empreendedorismo, a querer ser dona do próprio negócio e, claro, a dar uma imensa importância ao que os políticos pensam dos valores familiares (casamento, aborto, entre outros). Trata-se de um eleitorado coeso, que só cresce, afastando-se dia a dia do discurso tradicional da esquerda brasileira. O alerta, solenemente ignorado, foi dado há alguns anos por um estudo da Fundação Perseu Abramo, do próprio PT. Desde então, o fenômeno tem se cristalizado a uma velocidade exponencial: existe hoje um imenso ruído entre aquilo que o partido diz e os anseios do povo — particularmente, nos grandes centros urbanos. O brasileiro, goste-se ou não, está mais conservador.
Olhando essa mudança pela perspectiva do “copo meio cheio”, poderia ser uma excepcional oportunidade para o início de uma renovação no discurso da esquerda. Situação semelhante aconteceu com o Labour Party no Reino Unido, sob o comando do ex-primeiro-ministro Tony Blair. Depois de serem seguidamente derrotados nas urnas pela defesa de plataformas políticas já superadas, os trabalhistas deitaram no divã e atualizaram suas bandeiras. Deu certo. Por aqui, falta humildade. De fato, não é fácil mudar, fazer um balanço de seu próprio programa, depois de tantas campanhas vitoriosas. Mas, caso não realize essa correção de rota a tempo, marcadamente no campo econômico, Lula e o PT podem colher muito mais do que uma fragorosa derrota nas eleições municipais deste ano. Eles perderão (talvez em definitivo) a conexão com o que deseja a maioria do povo brasileiro.
Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2024, edição nº 2913