Carta ao Leitor: A linha do crime
Autoridades precisam recuperar o tempo perdido para virar o jogo contra a indústria do roubo de celular

O programa Tolerância Zero é sempre citado como um exemplo bem-sucedido de política na área de segurança, pois reverteu de forma impressionante uma situação que beirava o total descontrole. Implementada em Nova York na década de 90, quando Rudolph Giuliani era prefeito da cidade, a iniciativa tinha como um de seus pilares um maior rigor nas punições aos bandidos, independentemente da gravidade dos casos. A lógica era a de que, ao enquadrar de modo implacável delitos considerados menores, a firmeza da atuação da polícia e da Justiça poderia inibir crimes maiores. E foi exatamente o que aconteceu. Em um prazo relativamente curto de tempo, a taxa de assassinatos recuou 61%.
Autoridades e políticos brasileiros costumam citar o Tolerância Zero como fonte de inspiração, mas são raríssimos os que conseguem aplicar com eficiência o mesmo modelo por aqui. Como resultado das políticas insuficientes para deter o avanço dos fora da lei, a segurança pública passou a figurar como uma das principais preocupações dos eleitores nas mais recentes pesquisas. Enquanto o poder público atua de maneira desorganizada, os bandidos atuam de forma cada vez mais organizada dentro de facções como PCC e Comando Vermelho. Elas estão por trás de vários tipos de crimes, incluindo roubos e furtos de celulares, problema que se tornou epidêmico em muitas cidades do país.
Para citar apenas um dos muitos números estarrecedores relacionados à modalidade, basta dizer que o Brasil registra hoje uma média de dois crimes do tipo por minuto, sendo que várias dessas ocorrências têm um fim trágico, com a vítima morta pelos assaltantes. Em reportagem da edição, os jornalistas Lucas Mathias e Ludmilla de Lima contam sobre a verdadeira indústria do crime que se criou em torno dos roubos e furtos de celulares. O PCC e outras facções viraram um braço importante do negócio, fornecendo armas para os assaltantes, a quem costumam pagar entre 200 e 500 reais por unidade. Os celulares chegam a mudar de mãos até quatro vezes, entre larápio, receptador, técnico de informática e revendedor, antes de retornarem ao mercado. O câmbio negro ficou internacional. Parte dos produtos é enviada ao exterior. Os destinos, em geral, são países da África, principalmente a Nigéria. A cidade de Lagos se tornou um centro de receptação de aparelhos ilegais.
A crise escalou a ponto de o presidente Lula declarar que o Brasil não poderia virar “a república de ladrão de celular”. Foram tomadas recentemente medidas para tentar dificultar o comércio ilegal, como o lançamento de um aplicativo para fazer um cadastro nacional de aparelhos. Em outra frente de atuação, o Ministério da Justiça enviou à Casa Civil um projeto para aumentar as penas por receptação de telefones roubados e furtados. Governos estaduais também têm tentado aumentar a repressão aos bandidos. Essa reação demorou. Se as autoridades realmente levassem a sério as regras do Tolerância Zero, o problema teria sido combatido no nascedouro, antes de se tornar mais um braço lucrativo da indústria do crime. Agora, será preciso recuperar o tempo perdido para virar esse jogo.
Publicado em VEJA de 23 de maio de 2025, edição nº 2945