Carta ao Leitor: A Igreja e o Estado
Em meio ao avanço evangélico no Brasil, vale a pena olhar os exemplos dos pioneiros americanos, que, sabiamente, ergueram um muro entre religião e política

Donos de uma população de intensa fé e profundamente identificados com o protestantismo, os Estados Unidos tiveram enorme dificuldade em separar a religião da formação oficial de seu Estado. Nos debates para a promulgação da Constituição, de 1787, havia uma forte pressão para que o país se declarasse como uma “nação cristã” em sua carta. A medida só não avançou pela ação dos chamados founding fathers, os pais-fundadores. Influenciados pelo deísmo — doutrina que acredita na existência de Deus, mas não nos dogmas e nos rituais de uma igreja —, eles preferiram manter a separação entre os dois assuntos. Benjamin Franklin, George Washington, Thomas Jefferson e, em especial, Thomas Paine (“My own mind is my own church”) trabalharam incansavelmente para evitar a fusão entre os dois temas. Evidentemente, a religião continuou a exercer papel relevante na política e nos valores da nova pátria. Baseados na ética do trabalho e no espírito colaborativo, os Estados Unidos, de fato, construíram um modelo bem-sucedido. Até hoje, vale ressaltar, a formação religiosa de seus cidadãos é apontada como um dos fatores marcantes no seu desenvolvimento — não porque ela se misturou com a política. Mas como um dos pilares do modus vivendi americano.
Com uma tradição majoritariamente católica, o Brasil seguiu uma trilha diferente. Da fundação do país, celebrada com uma missa, até 1889, o catolicismo foi nossa religião oficial — e tivemos um padre, Diogo Feijó, como regente do Império entre 1835 e 1837. Tal influência permaneceu significativa até o golpe militar de 1964, quando paulatinamente setores da Igreja, na defesa dos direitos humanos, se afastaram do poder central. Coincidentemente, começa aí o momento de crescimento da fé evangélica no Brasil. Novas vertentes, com mensagens mais modernas e diretas, iniciaram um avanço fulminante sobre a população brasileira, especialmente nas camadas de menor poder aquisitivo. Havia quem visse nesse movimento um sinal alvissareiro. Com o crescimento dos evangélicos, mazelas como o analfabetismo e a violência poderiam diminuir e a ética do trabalho talvez ajudasse a impulsionar o crescimento econômico.
Até aqui, infelizmente, os efeitos positivos ainda não foram sentidos da mesma forma que os negativos. Desde o início, o projeto dessas novas igrejas evangélicas se confunde com a política, defendendo interesses próprios e usando os fiéis como massa de manobra para emplacar representantes no Congresso Nacional. A bancada evangélica, hoje com 246 membros (220 deputados e 26 senadores), é uma das mais participativas em Brasília e o seu apoio, fundamental na aprovação de emendas e leis. Não por acaso, essas igrejas foram contempladas com isenções na reforma tributária, facilitando ainda mais sua multiplicação país afora. Hoje nascem dezessete novos templos a cada 24 horas no Brasil. Na estimativa mais conservadora, mantido o ritmo atual, o país será uma nação de maioria evangélica já em 2032. Nada contra a crença, ao contrário, mas talvez valesse a pena olharmos os exemplos dos pioneiros americanos, que, sabiamente, ergueram um muro entre religião e política — algo que nem os Estados Unidos, aliás, conseguem fazer nos dias atuais.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2023, edição nº 2851