Carta ao Leitor: A banalidade do mal
Torna-se cada vez mais evidente que alguma regulação precisa ser instituída nas redes sociais, e ela nada tem a ver com censura — mas com limites

Em seu magistral clássico Eichmann em Jerusalém, de 1963, a filósofa alemã Hannah Arendt descreve de maneira impressionante as reações e as justificativas do tenente-coronel nazista para o transporte de 725 000 judeus cujo destino final era o campo de concentração de Auschwitz. Num conceito que Arendt definiu como a “banalidade do mal”, Adolf Eichmann se dizia inocente das acusações impetradas pelo tribunal em Israel. Afirmava só cumprir ordens de superiores e sua função na máquina de guerra seria apenas logística. Ou seja: sua defesa se baseava na ideia de ser um mero burocrata que levava pessoas de um ponto a outro, sem nenhuma responsabilidade sobre o desfecho daquelas vidas. A alegação não surtiu efeito e Eichmann, que colaborou para os assassinatos, foi condenado à forca, depois de julgado, em 1962.
Guardadas todas as proporções, em contexto evidentemente muito diferente, as plataformas digitais recorrem a uma lógica semelhante para se isentar de qualquer responsabilidade em torno de sua influência em eventos violentos que acontecem em todo o mundo e são alimentados pelas redes sociais. Para ficar apenas em exemplos mais recentes: os ataques macabros nas escolas — inclusive no Brasil — e as tentativas de golpe político, como a de 8 de janeiro em Brasília. De acordo com as big techs — Google, Facebook, Twitter e afins —, elas simplesmente distribuem o conteúdo e devem permanecer isentas de punições, mesmo que os criminosos utilizem suas malhas para arregimentar cúmplices e planejar tais atos. Traficantes de drogas poderiam usar o mesmo deturpado raciocínio em seus julgamentos.
Felizmente, está em discussão no Congresso um projeto de lei que pode mudar esse entendimento, numa bem-vinda correção de rota. Pelo texto, que será debatido em breve na Câmara, os gigantes serão penalizados com multa e até a suspensão de serviços, como ocorreu com o Telegram na quarta 26, caso ajudem a distribuir e, invariavelmente, impulsionar materiais que contribuam para as atrocidades. Como se sabe, essas plataformas têm sobejas condições tecnológicas de moderar posts e vídeos agressivos e descabidos. Hoje elas já fazem uma triagem de conteúdo sexual. Por que não retirar do ar, então, insinuações de ataques em instituições de ensino ou depredações de prédios públicos? E mais ainda: por que não penalizá-las, dada a evidência de terem contribuído para a violência, muitas vezes monetizando essas ações?
Torna-se cada vez mais evidente que alguma regulação precisa ser instituída nas redes, e ela nada tem a ver com censura — mas com limites. Essa discussão, aliás, já vem acontecendo em diversos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, o caso de uma família cuja filha morreu nos ataques do Estado Islâmico em Paris, em 2015, chegou à Suprema Corte (Gonzalez X Google). Os Gonzalez pedem indenização porque a empresa, por meio do YouTube, teria ajudado os criminosos a combinar a invasão de uma boate francesa que culminou no assassinato da jovem e de pelo menos mais 129 pessoas. Há um caso semelhante contra o Twitter, também acusado de ajudar a espalhar o terrorismo. Ambos aguardam a palavra final da Corte americana. Nesse mercurial embate, é vital ressaltar que as redes sociais e os buscadores de conteúdo trouxeram um enorme avanço para a humanidade em várias áreas, difundindo conhecimento e informação. Isso não significa, no entanto, que sejam infalíveis e que possam pairar — intocados, na torre de marfim — acima do bem e do mal.
Publicado em VEJA de 3 de maio de 2023, edição nº 2839