O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem fazendo da pauta ambiental uma das principais apostas para ampliar a relevância internacional do país. Antes mesmo de tomar posse, participou da 27ª Conferência das Nações Unidas para o Clima (COP27), no Egito, onde prometeu zerar o desmatamento. Dias depois, anunciou o retorno de Marina Silva, nome respeitado mundialmente, ao cargo de ministra do Meio Ambiente. Empossado, fez o país sediar a Conferência do Clima e lançou a candidatura vitoriosa de Belém como sede da COP30, em 2025. Ao discursar na abertura da Assembleia Geral da ONU, em setembro, cobrou dos países ações mais céleres para o cumprimento dos objetivos de desenvolvimento sustentável. Dentro de seu próprio território, no entanto, vê um Brasil cada vez mais no olho do furacão dos extremos climáticos, com uma sucessão de catástrofes que vai evidenciando o despreparo do poder público, não apenas no âmbito federal, para prever e lidar com grandes eventos climáticos fora da normalidade — que, infelizmente, tendem a ser o novo normal.
O ano de 2023 mal havia começado quando 65 pessoas morreram soterradas por deslizamentos de terra provocados por temporais na costa sul de São Sebastião, litoral norte de São Paulo. Poucos meses depois, foi a vez de o Sul do país ser atingido por chuvas fortes e enchentes de intensidades inéditas, que deixaram ao menos 47 mortos e milhares de desabrigados — e que ainda ameaçam estados como Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Quase ao mesmo tempo, uma estiagem sem precedentes secou os rios da Amazônia, onde está a maior bacia hidrográfica do mundo, cobriu Manaus de fumaça e obrigou o poder público a adotar ações de emergência para socorrer a população atingida. Agora, as previsões apontam que uma seca recorde também ameaça os estados do Nordeste nos próximos meses.
Embora sejam tragédias distintas, elas têm a mesma origem: o aquecimento global. No Brasil, regiões como a Amazônia tiveram aumento de 3 graus nas temperaturas médias nas últimas seis décadas (veja quadro). Já há alguns anos cientistas apontam que a “febre” pela qual passa o planeta tem uma causa: a ação humana, desencadeada principalmente pelo aumento da produção de gases que causam efeito estufa na atmosfera em escala mundial, desde a era da Revolução Industrial — de lá para cá, a temperatura média do planeta subiu 1,8 grau. Pesquisadores calculam que, se continuar no ritmo atual, o planeta estará de 2,6 a 2,8 graus mais quente na segunda metade do século. Isso resulta na ocorrência de eventos climáticos extremos cada vez com maior frequência e fúria. Um cenário para lá de apocalíptico.
O Brasil está entrando no olho do furacão na era dos extremos climáticos, com o agravante do despreparo das autoridades para enfrentar um drama que se desenha há décadas no horizonte. “Se antes as catástrofes batiam à porta, agora arrebentam nossa porta, entram nas nossas casas e se instalam da pior forma possível”, alertou Marina Silva, no fim de setembro, durante oficina em Brasília para construção de uma nova tentativa de organizar o país para o problema, com a elaboração do Plano Clima — Adaptação. Entre as necessidades mais urgentes estão mapear áreas de risco, com sistemas de monitoramento e envios de alerta, estruturar órgãos municipais e defesas civis e implementar planos de contingência. Também é preciso criar uma espécie de marco legal sobre desastres naturais, para fortalecer a cooperação e a comunicação entre os níveis de governo, e um protocolo de prevenções a desastres. O poder público vem se mexendo na direção certa, é verdade, mas com uma lentidão preocupante. “Não estamos avançando para tornar a população resiliente”, diz o pesquisador Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da USP. Para o diretor de Florestas e Políticas Públicas da BVRio, Beto Mesquita, são as prefeituras que precisam estar mais bem equipadas para implementar planos de contingência e agir de maneira a evitar danos materiais e perdas de vidas. Segundo ele, embora haja um sistema robusto de monitoramento e previsões meteorológicas, os alertas não são usados de maneira assertiva. “A maioria das prefeituras não está minimamente preparada para planejar e adotar as medidas necessárias para adaptação e mitigação”, diz.
Diante da ocorrência de desastres de grande magnitude, o Brasil tem atuado de duas formas. Uma é totalmente reativa, com o envio de socorro às pressas para a estados e municípios atingidos. Foi o que ocorreu em São Sebastião, na Amazônia e no Sul do país, quando equipamentos, pessoal, recursos financeiros e comitivas de ministros foram enviados aos locais atingidos. Outra reação é mais de médio e longo prazo: ela prevê planos de mitigação, adaptação e prevenção. O país se comprometeu a reduzir, em 2025, 37% da emissão registrada vinte anos antes, e 43% em 2030. Para isso, prometeu garantir 45% de participação de bioenergia sustentável na sua matriz energética até 2030, e restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares de florestas. Além disso, o governo federal discute a revisão do Plano Nacional de Adaptação, de 2016, que pouco foi implementado para além de estudos, e discute ações práticas para preparar os municípios para entrar rapidamente em estado de emergência. “As metas serão rediscutidas a cada quatro anos para serem casadas com o Plano Plurianual, que é quando o governo federal pensa a execução orçamentária”, diz a secretária nacional de Mudanças Climáticas do Ministério do Meio Ambiente, Ana Toni.
Em termos de investimentos em novas tecnologias, o governo federal anunciou neste mês um aporte de 200 milhões de reais em um supercomputador para aprimorar a antecipação de eventos climáticos extremos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A previsão é de o equipamento entrar em operação ainda neste ano, em substituição ao Tupã — que deveria ter sido aposentado em 2021. Já Lula, em seu primeiro evento público após recuperar-se de cirurgia, anunciou, na terça 24, o programa Sertão Vivo, com financiamento de 1,75 bilhão de reais para enfrentar a seca no Nordeste. Entre os objetivos estão aumentar a resiliência das comunidades rurais do semiárido às mudanças climáticas, implantar tecnologias de captação, armazenamento e reúso da água, restaurar biomas e reduzir os gases de efeito estufa.
Enquanto o poder público reage — ou planeja — com o habitual atraso, os impactos vão se acumulando. Os registros das últimas catástrofes climáticas são superlativos. A seca que atinge o Amazonas colocou 59 das 62 cidades do estado em situação de emergência. Em Manaus, a seca foi a pior registrada em 121 anos. O volume do Rio Negro atingiu a menor marca desde 1902. Para ilustrar o momento ambiental complexo que vive o Brasil, do outro lado do país, o Lago Guaíba, em Porto Alegre, transbordou após ter atingido o seu maior nível de água desde 1941. O impacto é assustador. Só em Santa Catarina, mais de 30 000 pessoas ficaram desabrigadas em consequência das últimas chuvas; na Amazônia, 653 000 pessoas foram afetadas. A cada catástrofe, seguem-se também as tradicionais enxurradas de promessas. Em São Sebastião, quase oito meses após a tragédia, ao menos 72 casas para pessoas de baixa renda, que deveriam ser construídas em caráter emergencial e entregues em abril, ainda não ficaram prontas.
Os mais recentes contratempos climáticos vividos pelo Brasil têm um “vilão” com nome já popularizado. O tempo seco no Norte e chuvoso no Sul é decorrência do El Niño, fenômeno que ocorre em intervalos irregulares de três a sete anos e é caracterizado pelo aumento da temperatura no Oceano Pacífico — ele altera os padrões de circulação atmosférica (ventos), transporte de umidade, temperatura e chuvas, principalmente em regiões tropicais. O que chama a atenção, porém, é a intensidade dos seus efeitos neste ano, antes mesmo de atingir seu ápice, previsto para os próximos meses. Isso ocorre porque 2023 tem batido recordes de temperaturas. Depois de julho, agosto e setembro terem sido os meses mais quentes já registrados, estudiosos avaliam que 2023 deve ser o de maior temperatura média mundial da história. A previsão é que ocorram novos eventos extremos de alta intensidade, como secas no Norte e Nordeste e chuvas acima da média no Sul e no Sudeste de agora até o início de 2024.
O impacto desses fenômenos climáticos extremos é devastador e amplo. O grande número de mortos e desabrigados em razão de secas, inundações, chuvas e deslizamentos de terra já é, lamentavelmente, conhecido. Outros efeitos, porém, são menos visíveis de imediato e podem ser igualmente graves, a começar pela saúde: além de causar desconforto térmico, as ondas de calor prejudicam o metabolismo humano e colocam em risco, particularmente, pessoas idosas e pacientes com problemas circulatórios. Na névoa que cobriu Manaus, a quantidade de poluentes em suspensão chegou a 225 microgramas por metro cúbico, dez vezes a concentração considerada tolerável pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Na Europa, um estudo publicado na revista Nature Medicine aponta mais de 61 000 mortes por calor no verão de 2022 — em maio deste ano, a Espanha chegou a proibir o trabalho ao ar livre em temperaturas acima de 39 graus. O impacto das variações extremas sobre outros seres vivos também é preocupante e pode afetar, sobretudo, a produção agropecuária — em junho, uma onda de frio inesperada em Mato Grosso do Sul derrubou os termômetros abruptamente, causando a morte de 2 700 cabeças de gado. No Amazonas, a seca nos rios impediu a navegação e bloqueou, não só o trânsito de ajuda humanitária com itens básicos, como as operações dos portos da Zona Franca de Manaus — o que de imediato mexe com os preços dos fretes e dos produtos. “Em última instância, isso impacta o PIB e eleva a inflação. Os extremos de temperatura acabam afetando o nosso bolso”, avalia Ronaldo Christofoletti, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e consultor brasileiro da Unesco para políticas do oceano.
A conta do despreparo não pode ser creditada apenas ao atual governo, pois alertas sobre extremos climáticos têm sido insistentemente emitidos desde o início da década de 1990. Em suas gestões anteriores, aliás, Lula colecionou vitórias no meio ambiente, como a redução do desmatamento da Amazônia. Mas a pretensão de fazer o Brasil liderar a discussão sobre o clima pressupõe que somos a vanguarda nessa área. A dificuldade em barrar ilegalidades na Amazônia e a sucessão de tragédias como a seca na Região Norte e as enxurradas no Sul mostram que estamos longe de ser um exemplo mundial. Não apenas no âmbito federal, o país negligenciou por muito tempo esse tipo de preparação mais efetiva para enfrentar fenômenos como os atuais. Agora, com urgência, precisa conciliar o correto discurso ambiental vendido para o mundo com o dever de casa.
Publicado em VEJA de 27 de outubro de 2023, edição nº 2865