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BR-319: a polêmica pavimentação da rodovia que corta a Amazônia

Prioridade para o governo, obra reabre controvérsia entre desenvolvimento econômico e a preservação da floresta

Por Eduardo Gonçalves Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h27 - Publicado em 26 fev 2021, 06h00

Iniciada na chamada “Marcha para o Oeste”, um conjunto de ações lançadas por Getúlio Vargas no fim dos anos 30, a estratégia de ocupar e ligar a Amazônia ao restante do Brasil virou um plano central de governo durante a ditadura militar (1964-85) sob o slogan “Integrar para não entregar”. Aberta no coração da floresta, a rodovia BR-319, que liga Manaus a Porto Velho — e, de lá, conecta a Região Norte ao país —, foi um dos maiores símbolos desse movimento, que também incluía a construção da Transamazônica e de hidrelétricas, a autorização de garimpos, a concessão de incentivos fiscais e uma intensa propaganda governamental para atrair os “homens sem terra” a ocupar a “terra sem homens”, “o Eldorado que surpreenderá o mundo”, como dizia a publicidade oficial.

arte mapa

Em 1969, uma reportagem de VEJA acompanhou o início da construção da BR-319, que envolvia centenas de homens derrubando, a machadadas, árvores tão altas quanto um prédio de dez andares, além do gigantesco trabalho de pavimentação. “Uma grande guerra de batalhas demoradas e cansativas para decidir a quem pertence a Amazônia, se ao homem ou à natureza”, relatava o texto. Considerada um dos maiores cases da ousadia da engenharia da época, a via ficou pronta em sete anos. Passadas mais de quatro décadas, o retrato da região mostra que a selva, até aqui, está vencendo a batalha contra o avanço dos homens. O miolo da estrada de 885 quilômetros perdeu completamente o asfalto e está repleto de atoleiros, crateras e locais onde a mata tomou a pista — somente as extremidades próximas às capitais do Amazonas e de Rondônia apresentam-se em condições de tráfego.

NA LAMA - Carga de oxigênio: caminhões tiveram de ser puxados por tratores -
NA LAMA - Carga de oxigênio: caminhões tiveram de ser puxados por tratores – (//Reprodução)

A depender do governo de Jair Bolsonaro, a luta para abrir caminho no coração da floresta vai continuar. A recuperação da BR-319 se tornou uma das prioridades de investimentos na área de infraestrutura na Região Norte. O desafio será maior ainda pelo seguinte “detalhe”: o mesmo governo recordista de desmatamento da Amazônia e que fala em passar uma boiada sobre as regras ambientais pretende transformar a obra em uma prova de que o Brasil é capaz de conciliar desenvolvimento econômico à necessidade de preservação. “O nosso plano é que a rodovia seja um grande cartão de visitas para mostrar ao mundo o nosso respeito ao meio ambiente. Será um modelo para provar que é possível equilibrar os três pilares do desenvolvimento: o econômico, o social e o ambiental”, declara o secretário nacional de Transportes Terrestres, coronel Marcello da Costa.

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A complexidade da obra e a delicadeza de abrir caminho na parte mais intocada da floresta fizeram governos anteriores recuar da intenção de executar algo semelhante. A reconstrução da BR-319 já fez parte dos planos Brasil em Ação, de Fernando Henrique Cardoso, e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), de Luiz Inácio Lula da Silva, mas nunca saiu do papel. Na atual gestão, o Ministério da Infraestrutura, comandado por Tarcísio Gomes de Freitas, já recapeou mais de 2 500 quilômetros de rodovias pelo Brasil afora, o que lhe rendeu o apelido de o “asfaltador-geral da República”, mas nada se compara a essa intervenção no coração da Amazônia. O presidente e Tarcísio já anunciaram que 52 quilômetros devem ser concluídos até 2022, a tempo de ser exibidos na propaganda eleitoral. A ideia é também iniciar até lá os trabalhos em outro trecho maior, de 405 quilômetros.

ESTRATÉGIA - Transamazônica: a rodovia foi um dos símbolos do projeto militar de integrar o Brasil -
ESTRATÉGIA - Transamazônica: a rodovia foi um dos símbolos do projeto militar de integrar o Brasil – (Roberto Stuckert/Folhapress/.)

No total, a repavimentação da estrada pode custar 1 bilhão de reais, mas nesse projeto o dinheiro sempre foi o de menos. O grande impeditivo é que a rodovia dá acesso a uma área intacta da Amazônia — um santuário de animais e plantas ameaçados de extinção, como a onça-pintada e a castanha-da-amazônia, além de dezenas de comunidades indígenas. Não era possível avançar no plano sem um aprofundado estudo de impacto ambiental. Complexo, ele demorou onze anos para ficar pronto, até que acabou sendo entregue em agosto de 2020 pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). O trabalho agora está sendo analisado pela equipe técnica do Ibama para a liberação do licenciamento do restante da obra. Quem acompanha o assunto de perto diz que, diferentemente do que houve nas gestões passadas, o órgão não será um empecilho ao empreendimento.

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A despeito do otimismo dentro do governo quanto à superação desse entrave burocrático, a pressão de ambientalistas, que são historicamente contrários à estrada, deve crescer nos próximos meses. Eles preveem, com a obra, um aumento de quatro vezes nas taxas de desmatamento naquela região. Não se trata de um alarmismo típico dos ecoxiitas, pois o próprio relatório de impacto ambiental encomendado pelo governo faz alertas claros sobre o risco da intervenção. Em determinado trecho do trabalho, de mais de 2 000 páginas, o documento diz o seguinte: “A melhoria do acesso facilita a abertura de ramais de forma indiscriminada contribuindo para a exploração de atividade madeireira e a expansão da agropecuária, alterando a paisagem com o processo de conversão de áreas de floresta em pastagens e lavouras temporárias”. O relatório, no entanto, conclui que a repavimentação vale a pena em virtude dos “benefícios sociais e econômicos gerados” e faz um alerta de que a “viabilidade ambiental” se dá com “a plena execução das medidas mitigadoras” — ações para atenuar o impacto do projeto na floresta.

Para quem engrossa o coro de oposição do projeto, obter o licenciamento para a obra em um prazo curto não será tão simples quanto pensa o governo. “A legislação prevê a realização de audiências públicas com todas as partes envolvidas”, lembra Rafael Rocha, procurador do Ministério Público Federal do Amazonas. Nesse aspecto, o complicador é que os encontros estão suspensos por tempo indefinido por causa da pandemia de Covid-19. Mesmo vozes mais moderadas envolvidas nessa discussão, como Sarney Filho, ex-ministro do Meio Ambiente dos governos FHC e Michel Temer, fazem restrições. Segundo Sarney Filho, a via provocaria o efeito “espinha de peixe” — a abertura descontrolada de vicinais clandestinas no seu entorno. “Com certeza, vai provocar a ocupação ilegal de terras públicas e unidades de conservação”, afirma.

FOCO - Tarcísio: o ministro ganhou o apelido de “asfaltador-geral da República” -
FOCO - Tarcísio: o ministro ganhou o apelido de “asfaltador-geral da República” – (Alan Santos/PR)
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Firme na decisão de tocar a obra adiante, o governo tenta contornar as objeções acenando com a proposta de transformar a BR-319 numa “estrada-­parque” cercada e monitorada 24 horas por dia, com postos de fiscalização, consolidação de unidades de conservação em volta e a criação de uma floresta nacional, além de dezenas de passagens subterrâneas para a circulação de animais. Conforme os estudos, a exploração organizada do turismo também seria uma grande ferramenta para inibir crimes ambientais. Diferentemente de outras propostas polêmicas da atual gestão, como liberar o garimpo em áreas indígenas, a reconstrução da BR-319 é defensável sob vários ângulos, incluindo a necessidade social. A única ligação terrestre de Manaus com o restante do Brasil é a rodovia — as outras opções são por transporte aéreo e fluvial. E o isolamento geográfico se mostrou extremamente danoso após a crise de falta de oxigênio durante o colapso do sistema de saúde amazonense no início deste ano. Vindos da Venezuela e de outras partes do país, comboios de caminhões carregados com mais de 100 000 metros cúbicos do produto precisaram ser puxados por tratores em meio aos atoleiros. A viagem demorou três dias, ainda assim menos do que demoraria pela via tradicional, a balsa do Rio Madeira, de seis dias. “Com essa crise, a falta da rodovia mostrou que não é só um problema econômico, mas de saúde pública. Se tivéssemos o asfalto, teríamos conseguido trazer o oxigênio de uma forma mais barata e rápida”, disse a VEJA o governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC).

Além disso, é consenso entre os envolvidos a importância da via para a infraestrutura econômica da região. Segundo Wilson Périco, presidente do Centro da Indústria do Estado do Amazonas (Cieam), a existência de um caminho rodoviário consistente para escoar a produção iria alavancar a concorrência com outros modais, como o aéreo e o fluvial, e ajudaria a indústria e o comércio locais. “Com um tempo de entrega mais rápido, a um custo menor, você reduz o frete e, consequentemente, o custo dos produtos tende a diminuir. Para as empresas, melhora o fluxo de caixa, já que cai o tempo de entrega e recebimento de produtos”, afirma. Segundo o economista Osiris da Silva, a rodovia é “essencial” para integrar o Amazonas à economia do país. “Estudos conclusivos demonstram que o desenvolvimento econômico é a chave para a proteção ambiental”, lembra.

O grande problema é que o governo Bolsonaro dispõe de pouco — ou nenhum — crédito na área ambiental, o que aumenta as dúvidas sobre se as promessas de fazer da BR-319 um cartão-postal serão de fato levadas a cabo ao fim das obras. Se esses compromissos forem realmente cumpridos, a empreitada vai representar uma formidável guinada no comportamento do Palácio do Planalto na política amazônica, deixando de lado a mentalidade destrutiva do progresso a qualquer custo em troca da tática muito mais inteligente do desenvolvimento sustentável. Nunca é tarde para rever a ideia de deixar passar a boiada. O país só tem a ganhar com isso.

Publicado em VEJA de 3 de março de 2021, edição nº 2727

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