Beleza sem filtros: a valorização da imagem real ganha as redes sociais
Movimento prega a exaltação dos traços naturais, perdidos atrás dos onipresentes retoques digitais que produzem rostos perfeitos
Abrir o Instagram e verificar as últimas postagens dos amigos é o modo como uma multidão de indivíduos começa, segue e termina seu dia. Na tela de celular ou do laptop aparecerá um desfile de rostos perfeitos: pele sem marcas, lábios grossos, cílios volumosos, contorno primoroso. Não é a expressão da realidade, mas passa a ser, porque quase todo mundo faz igual — aplica sobre a foto nua e crua um filtro que se encarrega de apagar imperfeições. De tanto olharem para si mesmas e para os outros com uma percepção deformada pelas edições do visual, muitas pessoas acabam embarcando em uma perturbação mental que ganhou até nome e sobrenome: dismorfia do Snapchat, menção ao aplicativo de mensagens que primeiro popularizou o trânsito de fotos pessoais na web. Reagindo ao exagero, um movimento pela valorização da beleza real vem ganhando adeptos na rede: a hashtag #semfiltro já tem mais de 8 milhões de marcações, boa parte delas de celebridades exibindo seus traços naturais.“É uma questão de liberdade de escolha. Quem se expõe ao natural encoraja outras pessoas a admirar a própria imagem independentemente dos padrões vigentes”, diz a antropóloga Hilaine Yaccoub.
Mostrar uma versão melhorada de si mesma, próxima do visual das irmãs Kardashian — elas próprias aficionadas por filtros de toda espécie —, pode começar como brincadeira e virar problema. A apresentadora Ana Furtado, 47 anos, publicou um vídeo comparando seus traços originais com os modificados por efeitos. “A busca pelo impossível é nociva e atinge todas nós. É um exercício diário escapar das armadilhas da comparação”, escreveu em seu perfil, onde tem 4,8 milhões de seguidores. As atrizes Larissa Manoela, 20 anos, e Bruna Marquezine, 25, também divulgaram fotos de cara limpa, bem como a apresentadora Patrícia Poeta (todas, claro, lindas de qualquer jeito). Paolla Oliveira, em entrevista recente, reclamou da “chatice” de ser perfeita sempre.
Na onda de exaltação da beleza natural, a influenciadora digital paulistana Dora Figueiredo, 27 anos, criou um filtro que, em vez de aperfeiçoamentos, contém frases para estimular a autoestima. Resultado: 27 milhões de aplicações. “Precisamos normalizar nossos defeitos”, pondera a sensata Dora. A estudante de publicidade Camila Hirt, 21 anos, de Brasília, confessa que adorava explorar as diversas possibilidades de efeitos em sua imagem — até se pegar consultando o preço de preenchimento labial em clínicas de estética. “Os filtros criaram incômodos que não existiam. Percebi que estava me comparando com minha própria imagem filtrada”, diz ela, que desde então reduziu drasticamente o volume de modificações.
Em grande parte por causa dos filtros, a busca por procedimentos estéticos tem, de fato, aumentado sem parar. As pesquisas no Google sobre harmonização facial e rinoplastia cresceram, respectivamente, 2 000% e 700% no último ano. A dermatologista Ligia Kogos conta que muitos pacientes chegam a sua clínica em São Paulo com as próprias selfies filtradas como referência para a aparência que desejam. “A parte boa é que os médicos conseguem entender melhor o que querem. O problema é que muitas vezes isso é inatingível”, ressalta.
Sem excessos, os filtros podem, sim, ser aliados nos dias em que a imagem no espelho não agrada. A professora de ioga catarinense Gabriela Bez, 29 anos, deixou de usar Photoshop em todas as imagens compartilhadas da rotina de academia e de biquíni e recebeu muitos elogios, mas nem por isso excluiu o app do seu cotidiano. “Busco uma relação de equilíbrio. Os filtros não são necessariamente danosos, mas abandonei os que fazem intervenções radicais”, afirma. Para o psicólogo Cristiano Nabuco, a melhor forma de lidar com essas ferramentas é se questionar sempre sobre motivos e consequências. “A recomendação é não se deixar levar por aquilo que todos estão fazendo e pensar sobre o que se posta”, ensina. Em resumo, o exagero e a dependência são sempre nocivos — ainda que se esteja em busca da beleza.
Publicado em VEJA de 14 de abril de 2021, edição nº 2733