Argentina fecha o cerco a condenados pelo 8/1, e direita brasileira se mobiliza
Justiça do país leva tensão a centenas de brasileiros que fugiram pela fronteira para escapar de punições
Em frente a uma escola de aviação da Força Aérea argentina, o brasileiro Wellington Luiz Firmino, foragido da Justiça daqui pela participação nos distúrbios golpistas de 8 de Janeiro, quis lacrar fazendo uma provocação a um ministro da Suprema Corte brasileira. “Alexandre de Moraes, eu estou aqui, lero-lero. Você não me pega”, disse, em tom de deboche, o motoboy de 34 anos em vídeo publicado nas redes sociais. Um mês depois, o gesto infantil deu lugar a um novo depoimento, agora de dentro de uma delegacia na fronteira da Argentina com o Chile. “Minha ideia era fugir: tentar ir para outro país. Mas, com nome na Interpol, na primeira passagem pela polícia, fui preso”, conta.
O motoboy pretendia chegar, por fronteiras terrestres, aos Estados Unidos de Donald Trump, nova etapa do roteiro de fuga que o levou à Argentina de Javier Milei. Ele é um dos 61 brasileiros condenados pelo 8 de Janeiro que tiveram neste mês o pedido de extradição recebido pela Justiça do país vizinho. No Brasil, Firmino foi sentenciado a dezessete anos de prisão pelo Supremo por associação criminosa, abolição violenta do estado democrático de direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
A mão longa da Justiça já havia alcançado antes outros dois brasileiros. Joelton Gusmão de Oliveira, de 47 anos, vivia com sua família em La Plata, na região metropolitana de Buenos Aires, onde está boa parte dos exilados do 8 de Janeiro, quando, segundo a polícia, foi abordado por “atitude suspeita”. Sua filha, Agnes, que está grávida e também mora na Argentina, conta outra versão. Segundo ela, o pai foi renovar o visto de moradia temporária e acabou sendo detido. Joelton foi condenado a dezessete anos de prisão, assim como a sua esposa, Alessandra Faria Rondon, que ainda está livre. Outra detenção também ocorreu em La Plata. De acordo com amigos, Rodrigo de Freitas Moro Ramalho, de 34 anos, teria ficado receoso de ser preso na frente dos dois filhos e da mulher e resolveu se entregar às autoridades.
As prisões foram consequência de dois fatores: a mudança dos ventos na Argentina e um pouco de falta de sorte. No final de outubro, o país promoveu o endurecimento da norma imigratória por meio de um decreto pelo qual o governo Javier Milei passa a não reconhecer mais a possibilidade de refúgio a condenados por crimes graves. O que era ruim ficou pior para os brasileiros — em especial os que defendiam o golpe contra Lula e a intervenção militar — quando, por sorteio, foi designado o juiz federal Daniel Rafecas, que tem uma carreira toda marcada pela defesa de direitos humanos e da democracia. No seu maior caso, ao julgar a atuação do Primeiro Corpo do Exército na ditadura militar, ele identificou cinquenta centros clandestinos de sequestro e tortura, responsabilizou 300 pessoas e reconheceu 3 000 vítimas de crimes. O caso chegou a ele após o ministro Alexandre de Moraes ter enviado os pedidos de extradição por meio do Itamaraty, que os encaminhou à chancelaria argentina. De lá, os diplomatas distribuem a petição para o Judiciário argentino. Os casos de extradição serão analisados um a um por Rafecas, que verificará se há motivação política no pedido de Moraes e características dos réus, como idade e quadro de saúde. Se as extradições forem concedidas, ainda caberá recurso à Corte Suprema do país — a decisão final sobre extradição sairá do gabinete de Milei.
Apesar do entusiasmo do bolsonarismo com Milei, a ajuda do governo argentino pode não vir. A Casa Rosada sinalizou que deve seguir as ordens judiciais nos casos de extradição. Para Fabia Carvalho, professora de direito internacional, o governo terá dificuldade em conceder asilo político diante das provas robustas de crimes. As autoridades indicam que não pretendem fazer uma intervenção desse nível em decisões de autoridades brasileiras, inclusive, para evitar retaliação no futuro. “Para quem achava que a Argentina ia ser o paraíso, está se mostrando o contrário”, diz Fabia Carvalho.
A direita brasileira se movimenta como pode para tentar ajudar os aliados em terra estrangeira. O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) publicou uma nota oficial pedindo a ajuda de Milei e de seu chanceler, Gerardo Werthein. “Foi com muito pesar que tomei ciência sobre a prisão dos exilados políticos na Argentina”, disse o Zero Três, disparando críticas ao juiz, “vinculado à esquerda radical argentina”. O ex-ministro das Relações Exteriores de Bolsonaro, Ernesto Araújo, também tem atuado em defesa dos expatriados. O bolsonarismo tenta se valer de aliados no Congresso argentino, como a deputada Maria Celeste Ponce, do La Libertad Avanza, partido de Milei, que classifica as prisões como ilegais. O advogado Claudio Caivano, que atende dezenas de refugiados, pretende se reunir com a congressista. Ele já esteve com outras duas deputadas: a correligionária de Ponce, María Cecilia Ibañez, e Alida Ferreyra, do Partido Libertario. No Brasil, o defensor foi um dos organizadores do “Expo Freedom Brazil” que, durante o G20, espalhou em Copacabana placas com fotos e informações de pessoas que dizem ser perseguidas pela Justiça brasileira.
A estimativa é que haja em torno de 400 “patriotas” exilados na Argentina, nem todos condenados (alguns estão sendo investigados e outros foram apenas denunciados). Metade deles já entrou com processo na Comissão Nacional de Refugiados (Conare) para tentar obter asilo. Um deles é Symon Filipe de Castro Albino, de 33 anos, que, após a derrota de Bolsonaro, ficou 65 dias acampado em Campinas (SP), sua cidade de origem, antes de ir para a frente do QG do Exército em Brasília. Ele filmou a manifestação para suas redes sociais, onde tem mais de 600 000 seguidores. Symon não foi julgado, mas responde por dezesseis crimes. Com as contas bloqueadas, terminou o casamento de mais de uma década, deixando quatro filhos com idades entre 4 e 12 anos, e ficou escondido por um ano e cinco meses no Brasil. O incentivo para sair do país chegou em um vídeo da ex-candidata presidencial argentina Patricia Bullrich, hoje ministra de Milei. “Ela fala que nós seríamos bem-vindos”, conta. Symon passou de carro pela fronteira no Paraná e, assim que pisou em solo estrangeiro, pediu o documento de moradia provisória. Primeiro, foi para La Plata e hoje está em Misiones, onde trabalha como cozinheiro, mesmo serviço que prestava no Brasil. Entrou com processo de refúgio no Conare e é atendido por um defensor público argentino. “A gente se apega ao bordão do Milei. Que ‘viva la libertad’ é essa se ficarmos presos?”, afirma.
Enquanto Bolsonaro defendia a anistia pelo 8 de Janeiro diante de 40 000 pessoas na Avenida Paulista, no último 7 de Setembro, uma dezena de brasileiros protestava em frente ao Obelisco, no cruzamento das avenidas Corrientes e 9 de Julio, em Buenos Aires. No ato, Symon falava sobre a “raiva e o ódio” que sentiu durante a apuração da eleição de 2022. Ele mantém suas posições, mas se arrepende do que fez em Brasília. As recentes descobertas da PF sobre o roteiro e o início das movimentações para uma tentativa de golpe, ação que se conecta aos distúrbios do 8 de Janeiro (veja a matéria na pág. 22), deixam cada vez menos espaço para qualquer anistia. A Argentina não deve colocar barreiras para a Justiça daqui. Como na letra do tango de Gardel, tudo indica que o governo de Milei dará a seguinte sentença aos “patriotas”: “Adiós, muchachos, compañeros de mi vida”.
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920