Ala radical do PT empareda ministro Camilo Santana contra avanço no ensino
O chefe do Ministério da Educação vê resistências para deslanchar medidas que são atropeladas pela ideologia
São vastas as evidências de que é urgente e necessário dar um salto no ensino brasileiro. Há décadas o país figura no pelotão de trás do Pisa, a mais abrangente avaliação internacional da qualidade, feita pela OCDE, o grupo das nações desenvolvidas. Na sala de aula, isso se traduz em um batalhão de alunos que, aos 15 anos, não consegue solucionar problemas triviais de matemática nem entende textos de baixa complexidade. A trilha para a excelência, segundo mostram exitosas experiências mundo afora, envolve a implantação de iniciativas de longo prazo, que não mudem de curso ao sabor das trocas de governo. Neste momento, o Brasil justamente discute seu Plano Nacional de Educação (PNE), que estabelecerá metas para a próxima década, mas, infelizmente, o debate vem sendo atropelado pela ideologia, que em nada contribui para fazer girar a roda da boa educação.
Quem encabeça a grita contra várias ideias que o Ministério da Educação propõe, curiosamente, são alas radicais do próprio PT, mesmo partido do chefe da pasta, Camilo Santana, que encontra nesses colegas de sigla um paredão para seguir adiante não só com o plano, mas também com medidas que miram um avanço. Uma infeliz amostra dessa queda de braço se fez recentemente visível na Conferência Nacional de Educação, a Conae, em Brasília. Liderada pelo Fórum Nacional de Educação, que congrega 49 entidades (a maioria ligada a organizações sindicais e movimentos estudantis), a assembleia, embora de caráter apenas consultivo, decidiu votar pela revogação de dois dos principais pilares do ensino hoje no país: a Base Nacional Comum Curricular, que enfim esclareceu o que o estudante precisa aprender, ano a ano, e o novo ensino médio, que dá uma chacoalhada num modelo sabidamente ultrapassado. “São políticas homologadas no governo golpista de Michel Temer, que não respeitam a vontade dos trabalhadores nem dos estudantes”, diz Heleno Araújo, presidente do Fórum e amigo pessoal de Lula, dando o tom do embate.
Na solenidade de encerramento, uma parcela dos 2 200 delegados recebeu o ministro aos gritos de “Fora Lemann”, em referência à fundação mantida pelo empresário Jorge Paulo Lemann, que atua na área e virou sinônimo de “neoliberalismo nas coisas do ensino”. A mensagem tinha como alvo principal dois quadros do segundo escalão do MEC, nomes da mais alta confiança de Camilo: a secretária de educação básica, Kátia Schweickardt, e a secretária-executiva, Izolda Cela, que mantêm boa conversa com dirigentes da fundação. É só um grão de areia num mar de enroscos bem maior. O episódio, na verdade, escancara uma batalha interna que se desenrola nos corredores do MEC desde o início da gestão de Camilo. Uma parcela dos servidores e funcionários, indicados pelas entidades sindicais, alimentava a expectativa de uma guinada à esquerda para “dar o troco” no governo Bolsonaro.
Essa ala se opõe ao que vê como pragmatismo da “turma do Ceará”, como apelida o grupo mais próximo ao ministro, que governou o estado. Braço direito do chefe da pasta, Izolda, a número 2, anda tão desconfortável com toda a situação que confessou a interlocutores cogitar a possibilidade de se candidatar à prefeitura da cearense Sobral, agora que se filiou ao PSB. Nas últimas semanas, ela recebeu parlamentares da oposição queixosos dos rumos do Plano Nacional da Educação, que avisaram que irão jogar pesado na tramitação no Congresso, onde o martelo sobre o texto será batido. “O documento se mostrou intolerante com quem não está alinhado com o pensamento da esquerda radical. Ouviram um lado só”, critica a deputada federal Adriana Ventura (Novo-SP), que já apresentou um projeto de lei para que a discussão do plano se estenda por mais dois anos, postergando algo que se faz emergencial.
O filtro ideológico também se impõe sobre a educação no outro extremo do espectro político, que já se mexe para fazer valer sua agenda. As poderosas frentes parlamentares da agropecuária, evangélica e da segurança pública — o tripé do boi, da Bíblia e da bala — se articulam para garantir que o PNE contemple o ensino domiciliar e as escolas cívico-militares, e que barre a educação sexual do currículo. O mesmo grupo se prepara para fazer barulho em relação à proposta do MEC de revisão do ensino médio, que, após um ano de extenso debate, acabou voltando atrás em tópicos que lhe desfiguram a natureza. Cedendo aos apelos da base sindical do PT, Camilo apresentou um projeto de lei que reduz a quase metade o tempo em sala de aula que seria destinado aos itinerários formativos, em que o aluno elege as matérias que mais se amoldam a seus interesses. Pois está justamente aí uma das razões de ser da reforma: igual para todos, a atual fórmula não dá espaço para um mergulho mais fundo no que verdadeiramente atrai cada um, resultando em uma grade maçante e ineficaz, distinta do que funciona em tantos países.
Esse é um assunto que promete incendiar os debates no já inflamado Congresso. Descontentes, alguns secretários estaduais, que gastaram vultosas somas para implementar o ensino médio tal qual aprovado no governo Temer, se reuniram com o relator do PL na Câmara, o ex-ministro da Educação, Mendonça Filho (União-PE), pedindo para que mantenha a essência do projeto. “É sempre possível melhorá-lo, mas a ideologização excessiva pode causar enorme prejuízo aos alunos, que precisam estar engajados com a escola e mais conectados com as habilidades exigidas no mundo moderno”, pondera Maria Helena Castro, à frente da concepção da reforma, em 2017. Hoje, cerca de 400 000 jovens abandonam todo ano a sala de aula.
Em meio a tantas contendas, Camilo, que ingressou no MEC sob elevadas expectativas, depois de liderar no cenário escolar cearense uma notável mudança de patamar, se vê com as mãos atadas. Em evento ao lado de Lula, ele ouviu do presidente: “Você tem a missão de superar Fernando Haddad (atual ministro da Fazenda, que já comandou o MEC) como melhor ministro da Educação do Brasil”, disse Lula. Não será fácil. “Ele terá de escolher entre seguir com as políticas que realmente funcionam ou entrar para a história como o responsável por descontinuá-las”, alerta Priscila Cruz, presidente da ONG Todos pela Educação. Que a encruzilhada de Camilo o leve para o lado do que é testado, aprovado e capaz de fazer o país virar a página do mau ensino.
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2024, edição nº 2880