Agitação no púlpito: a briga íntima pelo comando da igreja Bola de Neve
Um vídeo que viralizou no dia do enterro do apóstolo Rina tornou público o caso
Uma nova denominação evangélica despontou no Brasil há três décadas com uma proposta revolucionária para a época. A Bola de Neve Church mirava os jovens, dizia-se conectada a praticantes de esportes radicais e, no lugar do púlpito tradicional, acomodava uma prancha de surfe, tradição que perdura até hoje. Seu fundador, Rinaldo Luiz de Seixas Pereira, o apóstolo Rina, chacoalhou o universo da religião ao criar um ambiente neopentecostal descontraído, com estrutura de casa de show, canções ao ritmo de reggae e rock e fiéis em roupas casuais, exibindo piercings e tatuagens. A mistura de modernidade e espiritualidade, com um quê de palestra motivacional, atraiu nomes como Gabriel Medina, Fernanda Vasconcellos, Sasha Meneghel e fez da Bola de Neve um sucesso fenomenal.
Da sala alugada no Cambuci, na capital paulista, Rina, teólogo com formação em marketing, construiu um império com mais de 560 unidades e células espalhadas por cinco continentes. Sua morte inesperada aos 52 anos, em um acidente de motocicleta, mostrou, porém, que, por trás da fachada de êxito e empolgação, a igreja acumulou controvérsias em série envolvendo poder, abusos e conflitos familiares.
A liderança da Bola de Neve estava em xeque desde junho, quando a cantora gospel Denise Seixas, mulher de Rina, denunciou o marido por lesão corporal, violência psicológica, ameaça, injúria e difamação — um inquérito que corre sob segredo no Tribunal de Justiça de São Paulo. Na época das acusações, foi concedida uma medida protetiva estipulando que o apóstolo mantivesse no mínimo 300 metros de distância dela. Presidente e vice da instituição, os dois foram afastados. A ausência de Rina era temporária, mas ele seguiu atuando nos bastidores. A de Denise, não — em agosto ela assinou um documento renunciando ao cargo de vice-presidente. Agora que apareceu a chance de a cantora assumir a presidência da igreja, o enredo deu uma boa sacudida.
A disputa veio à tona justamente no dia do velório de Rina e envolve um misterioso envelope. Aparentemente, a renúncia que Denise assinou precisa ser formalizada, e uma minuta do novo documento foi parar no meio da papelada do óbito e enterro do apóstolo. Em uma sala anexa ao velório, a viúva examinou o conteúdo do tal envelope (após, segundo a igreja, uma “agressão à funcionária” que o portava), localizou a minuta e acusou o conselho de querer forçá-la a assinar em um momento de luto. O conselho nega — em nota a VEJA, afirmou que “os papéis estavam num envelope no qual estavam arquivados outros documentos de rotina administrativa” e que “o pedido de renúncia não seria entregue no dia, em respeito ao clima de tristeza”. O fato é que a cena foi gravada, o vídeo viralizou e a briga se tornou pública.
Indignada, duas semanas após a morte do marido, Denise entrou com seus advogados na sede da igreja. O episódio culminou em abertura de boletim de ocorrência contra ela. Desde o afastamento de Rina, em julho, a gestão administrativa vem sendo exercida por Fábio Santos, integrante há mais de vinte anos da Bola de Neve, e a ocupação por ele da cadeira de presidente estava prestes a ser oficializada.
Na Bola de Neve, a liderança é inquestionável e dita o tom e as regras de todas as unidades. Segundo ex-fiéis, trata-se de uma espécie de “empresa teocrática”, em que a voz do presidente é vista como mensagem vinda diretamente de Deus, e quem a contraria comete pecado. L.J., 29, que não quis se identificar, frequentou a unidade de Fortaleza por seis anos e se afastou após notar “comportamentos duvidosos”. Perguntar sobre o destino do dízimo ou a arrecadação do mês é considerado um ato de rebeldia a ser sufocado. “Primeiro, me senti acolhida. Com o passar do tempo, vi que parecia mais uma empresa com CEO e franquias. A marca Bola de Neve é mais forte do que a palavra divina e o Rina era todo-poderoso”, contou a VEJA. Ele deixa mais três empresas com registro ativo: uma produtora musical, uma imobiliária e uma produtora audiovisual.
Por trás da vitrine de autonomia e livre-arbítrio da igreja move-se uma engrenagem burocrática e hierarquizada. A adoção do sistema neopentecostal de células, em que pessoas autorizadas criam pequenos grupos que se reúnem à parte do culto, facilita a supervisão de tudo e todos. “Os fiéis precisam da autorização do líder até para namorar. É um controle invasivo”, explica Lidice Meyer, antropóloga da Universidade Lusófona, em Portugal, especializada em religião. O dízimo arrecadado é enviado à liderança, que dispõe dele como bem entende. “É mais uma forma de centralização da autoridade”, ressalta Meyer. Não é à toa que os ânimos estão acirrados na cúpula da Bola de Neve.
Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2024, edição nº 2923