Adesão do Centrão amplia tensões entre Lula e partidos de esquerda
Grupo garante ao presidente maioria no Congresso, mas também vai confrontar o petista com pautas caras às siglas esquerdistas, incluindo o próprio PT
Eleito três vezes presidente da República, Lula é o principal líder do maior partido de esquerda do Brasil, o PT. Em mais de quarenta anos de carreira política, ele priorizou em manifestações públicas e discursos de campanha bandeiras caras aos esquerdistas, pregando basicamente aquilo que seus companheiros de caminhada gostariam de ouvir. No exercício do governo, no entanto, Lula sempre foi pragmático, conciliador de interesses difusos e adepto de projetos e estratégias que, na prática, muitas vezes se aproximam mais do centro do campo político. “Pai dos pobres e mãe dos ricos”, costumavam brincar seus assessores na fase final de seu segundo mandato, quando atingiu recordes de popularidade. Essa diferença de perfil entre o Lula candidato e o Lula mandatário está na raiz de boa parte das tensões políticas e econômicas do novo governo, como fica evidente na arrastada negociação sobre as mudanças no ministério e a formação de uma base de apoio no Congresso. Na campanha de 2022, o petista atacou o Centrão, como forma de fazer um contraponto ao adversário Jair Bolsonaro, e criticou a postura imperial do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Vencida a disputa eleitoral, Lula desceu do palanque, apoiou a reeleição de Lira ao comando da Casa, ao perceber que não tinha como derrotá-lo, manteve apadrinhados do Centrão em cargos de destaque da máquina pública e passou a negociar com o grupo uma adesão em bloco à nova administração. Essa guinada decorreu do fato de o presidente reconhecer que não tem voto para aprovar projetos prioritários só com os parlamentares de esquerda, que às vezes mais atrapalham do que ajudam no caso de pautas econômicas. A ampliação do leque de apoios seria o preço a ser pago em nome da governabilidade — e, segundo a ladainha petista, nada teria a ver com fisiologismo, pecha que o partido empregou para definir o mesmo tipo de transação que resultou no embarque do mesmo Centrão na gestão Bolsonaro. As conversas do presidente da República com Lira e deputados de PP e Republicanos, que esperam receber o controle de dois ministérios e de um punhado de estatais, ocorrem pelo menos desde maio. Até agora, Lula tem resistido a entregar pastas estratégicas e se esforçado para vender a ideia de que fechará um acordo, mas não se renderá incondicionalmente, como fez o seu antecessor.
É certo que Lira e o Centrão serão contemplados. Em diferentes ocasiões, eles pediram os ministérios da Saúde, do Desenvolvimento Social e da Agricultura. O plano inicial dos articuladores políticos de Lula era substituir dois ministros indicados pela esquerda pelos deputados André Fufuca (PP-MA) e Silvio Costa Filho (Republicanos-PE), mas PT, PSB e PCdoB não aceitaram ir para o sacrifício. O presidente, então, foi aconselhado a criar duas novas pastas para resolver o problema. Mesmo assim, o impasse continuava até o fechamento desta edição porque os esquerdistas resistem a abrir espaço para quem estava ao lado de Bolsonaro até o ano passado. Nem mesmo o vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, conservador notório convertido em neossocialista, mostrou disposição para ajudar o chefe. Pelo contrário, ele se envolveu numa espécie de guerra fria com o presidente. Para facilitar a entrada de PP e Republicanos na Esplanada, assessores sugeriram que Lula tirasse Alckmin do Ministério do Desenvolvimento e usasse a pasta para acomodar um dos indicados pelo Centrão. Como forma de fortalecer a ideia, alegaram que o PSB, partido de Alckmin, está à frente de três ministérios apesar de contar com apenas quinze deputados federais. Ou seja: teria muito poder para pouco voto.
No Palácio do Planalto havia a expectativa de que o vice, sempre disciplinado e prestativo, se sensibilizasse, procurasse Lula e aceitasse a demissão. Não foi o que aconteceu. Em reação, os socialistas passaram a espalhar a versão de que Alckmin se sentia muito bem no cargo e não pensava em sair dele. O recado foi assimilado. Até o fechamento desta edição, o vice continuava ministro, mas havia a possibilidade — anunciada pelo próprio presidente — de um braço de sua pasta ser transformado em Ministério das Micro e Pequenas Empresas, a fim de facilitar a acomodação do Centrão. Em seus mandatos anteriores, Lula também montou bases governistas com partidos de centro, como o MDB de Michel Temer, o PTB de Roberto Jefferson, o PL de Valdemar Costa Neto, e o PP, no qual brilhavam figuras como o ex-prefeito Paulo Maluf e o ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti. Esse tipo de composição permitiu, por exemplo, a aprovação de uma reforma da Previdência em seu primeiro mandato, apesar dos protestos de petistas. Também foi essa base mais ampla, ainda que não formalizada, que viabilizou o avanço no primeiro semestre deste ano de pontos importantes da agenda econômica, que muitas vezes enfrentaram oposição de setores da esquerda.
Na prática, o Lula presidente usa o Centrão para driblar o próprio PT e até mesmo o Lula candidato. O caso do novo arcabouço fiscal é sintomático. Tão logo o projeto foi apresentado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a deputada Gleisi Hoffmann, comandante petista, fez uma série de ressalvas ao texto, que, em linhas gerais, tinham a mesma essência: não engessar demais os gastos públicos. O projeto foi aprovado com alterações feitas por deputados e senadores, que preservaram a meta traçada por Haddad de zerar o déficit em 2024, igualando o total de receitas e de despesas, sem contar o pagamento de juros da dívida. Como essa meta é de difícil execução e dependerá de um aumento de arrecadação de 168 bilhões de reais, Gleisi e outros ministros petistas passaram a pressionar Haddad a suavizá-la desde já, sob a alegação de que o governo poderá ser obrigado a cortar verbas, prejudicando a execução de projetos, a fim de alcançar o objetivo traçado. Apesar de saber do tamanho do desafio, Haddad — com o aval de Lula — não recuou, até porque isso representaria a primeira desmoralização do recém-aprovado arcabouço fiscal.
Para ampliar as receitas, o ministro lançou medidas que precisarão ser votadas pelo Congresso. Entre elas, mudanças na tributação de fundos exclusivos e offshores, iniciativas que não têm a mesma dimensão da mais conhecida bandeira do partido nessa seara, a aprovação de um imposto sobre grandes fortunas, tema de dois projetos em tramitação no Senado, um deles relatado pelo líder do governo na Casa, Jaques Wagner (PT-BA). A opção por esse meio-termo foi determinada pelo governo diante da resistência do Centrão de aprovar qualquer aumento de tributos. “A gente até abre mão de taxar os ricos. A bancada diz que abre mão até de taxar os milionários. O que não dá é um país como o Brasil, com tanta desigualdade, continuar sem taxar nem sequer os bilionários”, afirmou o líder do PT na Câmara, Zeca Dirceu, após uma reunião sobre o tema.
Desde o início do terceiro mandato, Lula deixa claro que sua prioridade é recuperar a economia. Com a ajuda do Centrão, o ministro Fernando Haddad conseguiu mudar o ambiente econômico, no qual há hoje certo otimismo, em substituição à desconfiança reinante de meses atrás. Em recaídas típicas de palanque, Lula até ajudou a semear dúvidas sobre os rumos da política econômica ao defender a revisão da privatização da Eletrobras e a revogação da reforma trabalhista, mas na prática o presidente já deu demonstrações de que está disposto a enfrentar a oposição que seus próprios aliados fazem em temas que ele considera fundamentais para o sucesso de sua administração. A relação com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, é um desafio especial. Depois de ser alvo de uma campanha de desconstrução realizada pelo PT na eleição de 2014, quando disputou a Presidência contra Dilma Rousseff, Marina aceitou apoiar Lula em 2022 por entender que era fundamental derrotar Bolsonaro e o risco que o capitão representaria para a democracia brasileira. Em retribuição, Lula convidou-a a reassumir o Ministério do Meio Ambiente, do qual pediu demissão no segundo mandato do petista ao perceber que estava sendo tratorada pela bancada ruralista e pela ala desenvolvimentista do governo.
Na atual gestão, Marina serve ao propósito de Lula de apresentar-se como um aspirante a líder nas negociações globais sobre meio ambiente. Internamente, no entanto, a possibilidade de atrito entre os dois é cada vez maior. A ministra e o Ibama são contrários à exploração de petróleo na foz do Amazonas, enquanto a Petrobras e o Ministério de Minas e Energia são favoráveis ao projeto. A decisão final, como ocorre em todos os casos, será de Lula — e o presidente dá sinais de que comprará mais uma vez briga com a ministra. Numa entrevista recente, ele disse que continua sonhando com a exploração de petróleo na chamada margem equatorial, que renderia dividendos financeiros à população. “Nós tínhamos a Petrobras com uma plataforma preparada para fazer pesquisa nessa região. Houve um estudo do Ibama que dizia que não era possível, mas esse estudo do Ibama não é definitivo, porque eles apontam falhas técnicas que a Petrobras tem o direito de corrigir”, declarou. Numa estratégia de contenção de danos, o presidente escalou a Advocacia-Geral da União para tentar uma mediação entre Meio Ambiente, Minas e Energia e Petrobras, numa iniciativa que foi mal recebida pelos ambientalistas.
Não é apenas na área econômica que Lula nem sempre segue a cartilha da esquerda. Atendendo a uma demanda com forte apelo simbólico, o presidente criou o Ministério dos Povos Indígenas, comandado por Sonia Guajajara, mas mantém o governo distante do debate do sensível tema do marco temporal. Projetos sobre o assunto, que também é discutido no Supremo Tribunal Federal (STF), têm avançado nos moldes idealizados pela bancada ruralista, segundo ambientalistas e indígenas. Acolhendo outra sugestão de setores da esquerda, reforçada pela primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja, o presidente também nomeou onze mulheres para o ministério, superando a marca registrada no governo Dilma Rousseff. Além disso, escalou mulheres para presidir a Caixa e o Banco do Brasil. O ímpeto inicial de Lula para ampliar a presença feminina em espaços de poder logo perdeu força. Apesar da pressão de diferentes atores, ele não parece disposto, por exemplo, a indicar uma mulher para a vaga no STF que será aberta com a aposentadoria da ministra Rosa Weber. Sua prioridade é escolher alguém de extrema confiança e que, de preferência, conte com o apoio e a aprovação de líderes influentes do Congresso.
Lula também tem resistido ao revanchismo contra os militares, que é insuflado por aliados como o ministro da Justiça, Flávio Dino. O presidente quer punição severa a integrantes das Forças Armadas que participaram direta ou indiretamente do que ele considera uma tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro, mas concordou em deixar a responsabilização dos insurgentes a cargo da Justiça. O PT quis usar o episódio para propor até a reformulação do curso de formação dos militares. O presidente vetou a iniciativa. Ele também preferiu dar crédito ao ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, que, com seu estilo conciliador, trabalha para estreitar a relação entre o chefe e os comandantes das Forças Armadas. Depois de vencer a corrida presidencial por uma diferença de menos de 2 pontos percentuais, Lula sabe que precisa pacificar o país, prestigiar a frente ampla que contribuiu para a sua vitória e colocar a economia no rumo do crescimento sustentável. Com Bolsonaro encurralado na Justiça e a adesão do Centrão ao governo, o caminho poderia estar livre para o presidente, não fossem as contestações que têm partido, quase exclusivamente, da própria esquerda.
Publicado em VEJA de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857