A revolução do jornalismo: como REALIDADE transformou a imprensa brasileira
Revista mesclou apuração aprofundada com textos precisos, inteligentes e inovadores — aliados a ensaios fotográficos inesquecíveis


Vivia-se em outro mundo em 1966. O homem não havia pisado na Lua e os transplantes de coração eram apenas um sonho da medicina. A seleção canarinho só tinha conquistado dois dos atuais cinco campeonatos mundiais. Em um planeta dividido entre Estados Unidos e União Soviética, milhares morriam na Guerra do Vietnã. Fax e computador pessoal apareciam apenas nas histórias de ficção científica ou nos desenhos animados dos Jetsons. No Brasil, era impossível fazer ligações interurbanas diretas (a primeira chamada DDD só seria completada três anos mais tarde, entre Porto Alegre e São Paulo). Os números oficiais, naquela segunda metade da década de 1960, registravam 1,5 milhão de linhas telefônicas para 84 milhões de habitantes — no primeiro trimestre de 2025, a Anatel contabilizou 264 milhões de celulares habilitados no país (mais de um por habitante). Nos costumes, muita coisa era tabu ou proibida, de modo absurdo. Muita mesmo. Os casais não podiam se divorciar, o uso de pílulas anticoncepcionais era um anátema; a virgindade, uma regra; a homossexualidade, um incômodo, e à mulher só cabia o papel de submissa. Tudo parecia ser controlado por grupos conservadores, tanto na Igreja quanto no Estado.
Pelas mais variadas razões, certos períodos da história conseguem aglutinar mudanças profundas na humanidade — em transformações que repercutem por muito tempo. Foi assim, enfim, com os anos 1960 do século passado. Não demoraria para que a panela de pressão tradicionalista, porque nada podia, explodisse numa série de revoluções: nos costumes, na cultura, na política. Caetano Veloso decretaria, em 1968: “É proibido proibir”. Naquele contexto, de mãos dadas com o liquidificador de sonhos, e apesar da ditadura brasileira, a Editora Abril decidiu contribuir com conhecimento ao lançar uma revista dedicada a reportagens, e que cedo viraria ícone incontornável de qualidade. Batizada de REALIDADE, tinha periodicidade mensal e chegou às bancas em abril de 1966. Por acreditar que nosso país estava “crescendo em todas as direções”, a Abril dedicou tempo e recursos à montagem da nova equipe e à construção de um novo jeito de colher notícias, entrevistar e escrever. A apresentação da primeira edição resumia com clareza a ambição. “Surge a revista dos homens e das mulheres inteligentes, que desejam saber mais a respeito de tudo. Pretendemos informar, divertir, estimular e servir a nossos leitores. Com seriedade, honestidade e entusiasmo. Queremos comunicar a nossa fé inabalável no Brasil e no seu povo, na liberdade do ser humano, no impulso renovador de país e nas realizações da livre iniciativa. Assim, dedicamos REALIDADE a centenas de milhares de brasileiros interessados em conhecer melhor o presente para viver melhor o futuro.”
REALIDADE fez história porque soube retratar de forma exemplar um país que mudava. Com suas grandes reportagens, foi precursora de um jornalismo reconhecidamente investigativo, inventivo e exaustivo que acabaria virando escola. O modelo era ousado para aqueles tempos ao mesmo tempo caretas e ávidos por mudanças. A cada mês, doze textos, mesclando diferentes estilos (perfil, entrevista, depoimento, conto-reportagem, ensaio fotográfico, humor, pesquisa, aventura…) em torno de nove grandes temas (o país, política, sociedade, ciência, religião, mulher, esporte, cultura e o mundo). Apesar da censura e hipocrisia, a revista nunca teve medo de tratar com clareza de temas que eram considerados tabus: sexo, drogas, aborto, prostituição, miséria, corrupção, drogas… Em seus dez anos de circulação ininterrupta, ganhou prêmios, provocou debates, contribuiu para revelar e discutir as questões nacionais e internacionais (muitas delas sem solução até hoje), tornando-se referência de qualidade para o jornalismo brasileiro. Em episódio triste, quase heroico, o jornalista José Hamilton Ribeiro perdeu a perna esquerda e feriu a direita em uma mina terrestre durante a Guerra do Vietnã, em 1968. “A calça do lado esquerdo tinha desaparecido, a visão foi terrível. O sangue jorrava como de torneiras”, diria ele. Ribeiro viraria a chamada principal da edição de maio de 1968, o ano que nunca terminou, na bonita definição do jornalista e escritor Zuenir Ventura.

O primeiro número de REALIDADE, o de abril de 1966, chegou às bancas com uma tiragem de 250 000 exemplares, que se esgotou em apenas três dias. Na capa, um Pelé sorridente, em close, com um busby, o tradicional chapéu de pele usado pela guarda da então rainha da Inglaterra. Nas páginas internas, uma reportagem-sonho antevia a conquista do tricampeonato, na Copa que seria disputada em gramados ingleses três meses depois (o time canarinho não passou da primeira fase, com nosso grande craque ferozmente caçado pelos adversários em campo, frustrando o sonho de um domínio até hoje inalcançado, a vitória em três Mundiais consecutivos). O rei do futebol sorriu mais de noventa vezes para a câmera. As 36 primeiras tentativas, porém, perderam-se para sempre porque o fotógrafo esqueceu-se de pôr o filme na câmera.
A fórmula de textos aprofundados e bem escritos com fotos maravilhosas (várias delas reproduzidas no bloco dedicado à excelência da fotografia da Abril, que começa na pág. 32) caiu no gosto dos leitores e as tiragens de REALIDADE só cresceram em seu primeiro ano de existência, chegando a espantosos 505 000 exemplares na edição número 11. A revista cativou o público e esteve à altura daqueles tempos inesquecíveis. Outras publicações brasileiras produziam grandes reportagens, mas nenhuma era tão ousada, criativa e profunda. A equipe de repórteres, redatores e editores adicionava com maestria detalhes que faziam toda a diferença:
1 – Textos de alta qualidade técnica e narrativa, com toques literários à moda do new journalism que surgia nos Estados Unidos. Entre tantos outros, escreveram para REALIDADE o poeta Carlos Drummond de Andrade, os dramaturgos Nelson Rodrigues e Plínio Marcos e o músico Adoniran Barbosa.
2 – Temas polêmicos, como a reportagem de capa de outubro de 1967, com quarenta páginas mostrando que a tão propalada igualdade racial brasileira não passava de um mito (já naquele tempo), ou a edição especial dedicada às mulheres, em janeiro de 1967, que acabaria apreendida pelo governo militar.
3 – Profundidade na apuração, com revistas inteiras dedicadas a um tema: mulheres (em janeiro de 1967), juventude (setembro de 1967), Amazônia (outubro de 1972), metrópoles (maio de 1972) e Nordeste (novembro de 1972). Todas viraram documentos históricos usados em livros e pesquisas acadêmicas, dadas a abrangência e a qualidade das informações.
4 – Fotos emocionantes, impactantes, inesperadas, inéditas, encantadoras. Alguns dos maiores repórteres fotográficos do país trabalharam na revista ou foram contratados para produzir reportagens especiais.
5 – Edição criativa, sempre tratando o leitor com inteligência e respeito.
A qualidade era percebida não apenas pelo público, mas também pelos especialistas. Em seus primeiros sete anos de existência, de 1966 a 1973, REALIDADE venceu oito vezes o principal concurso do jornalismo brasileiro, o Prêmio Esso. Aos poucos, a imprensa e a sociedade absorveram os temas que inicialmente só eram tratados em REALIDADE, e a revista deixou de ser percebida como audaciosa, embora tenha estado sempre à frente de seu tempo. O mundo tinha avançado quando ela encerrou a bonita aventura (o último número circulou em março de 1976). Não se pode negar que tenha contribuído para o crescimento da sociedade. Não por acaso, virou assunto de cursos universitários e é tratada, ainda agora, com carinho e admiração, em marca que faz parte da história do Brasil. Direto ao ponto: REALIDADE mudou a realidade.
“Obsceno” e “Ofensivo”
Em 1967, uma edição inteira com pesquisas e textos inéditos sobre o duro dia a dia da mulher brasileira foi apreendida

Em janeiro de 1967, a edição número 10 de REALIDADE tratava de um único tema: a mulher brasileira. As reportagens, feitas com base em uma pesquisa nacional, discutiam temas como sexo, casamento e aborto. Entre depoimentos corajosos e personagens inusitados, brotou o mais profundo e amplo retrato jamais feito sobre as mulheres de nosso país. Com uma simples canetada, contudo, dois juízes de menores ordenaram o recolhimento de REALIDADE, sob a alegação de conteúdo “obsceno” e “ofensivo”. No mês seguinte, os militares promulgariam a Lei de Imprensa, que garantia ao governo o direito de censurar o que quisesse (até o fim dos anos 1970, foram proibidos cerca de 500 filmes, 450 peças teatrais, 200 livros e 500 letras de música).
Metade da tiragem destinada a deixar São Paulo a caminho de outros estados foi recolhida ainda na gráfica. A Abril recorreu da decisão ao Supremo Tribunal Federal, mas a sentença final, liberando a publicação, só foi promulgada quase dois anos mais tarde. Em maio de 2010, a editora republicou a famosa edição censurada e apreendida, distribuída junto com um especial de VEJA sobre mulheres. Naquela ocasião, do resgate das reportagens, o país foi apresentado a Zenaide dos Santos e sua filha Tânia. Segundo alguns historiadores, uma foto de Zenaide dando Tânia à luz teria sido um dos estopins da censura a REALIDADE, mais de quarenta anos antes — os moralistas da época ficaram chocados com a imagem do parto. Ex-funcionária de uma fábrica de móveis em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, Zenaide morreu em dezembro de 2009, aos 70 anos, vítima de insuficiência cardíaca. Tinha duas filhas e quatro netos. Procurada por VEJA, Tânia contou que a mãe se orgulhava de ter sido fotografada para a edição especial e revelou doces lembranças da infância de folhear aquelas páginas amareladas (os exemplares que haviam sido vendidos antes da apreensão circularam muito, com as pessoas fazendo questão de mostrar sua indignação).
Publicado em VEJA de 27 de junho de 2025, edição especial nº 2950