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A pantomima

O esforço patético da cúpula do governo e da Petrobras para tentar convencer a plateia de que não houve intervenção presidencial no preço do diesel

Por Roberta Paduan e Hugo Vidotto
Atualizado em 19 abr 2019, 07h00 - Publicado em 19 abr 2019, 07h00

A quinta-feira 11 foi um marco duplo para o governo de Jair Bolsonaro. Na mesma data em que celebrava seus 100 primeiros dias na Presidência da República, Bolsonaro pôs em risco a imagem de adepto do liberalismo econômico, adotada durante a campanha eleitoral e, em grande parte, responsável por sua eleição. Ocorre que o dia 11 também era a data em que a Petrobras anunciaria o reajuste dos combustíveis, cujo preço permanecia congelado havia quinze dias. Em março, a companhia cedera a um apelo do governo, que pediu que o prazo de aumento do diesel fosse ampliado para pelo menos quinze dias (até então, não havia periodicidade definida para os reajustes). A preocupação em Brasília era com o crescente descontentamento dos caminhoneiros, que ameaçavam entrar em greve. Pelos cálculos dos técnicos da estatal, o preço do combustível deveria ser majorado em 5,7%. Pois, por volta das 13 horas da quinta-feira, a Petrobras anunciou o novo valor do óleo diesel. O reajuste, que entraria em vigor no dia seguinte, elevaria em 11 centavos o preço do litro do combustível. Não foi o que aconteceu (veja a cronologia na pág. 44). Na noite da quinta-feira, o presidente da petroleira, Roberto Castello Branco, estava no aeroporto do Rio de Janeiro, prestes a embarcar para os Estados Unidos, quando recebeu uma ligação do presidente da República. Segundo sua explicação no dia seguinte, no Twitter, Bolsonaro só queria entender como a estatal havia chegado àquele número, que, na repentina condição de conhecedor da matemática dos combustíveis, lhe parecia absurdo, “se comparado à inflação”.

A ligação de Bolsonaro caiu como uma bomba na companhia. Castello Branco, que passaria a semana no exterior em conversas com investidores, convocou uma reunião de emergência com os diretores. A deliberação foi comandada do aeroporto mesmo, por telefone, e uma decisão saiu em minutos: o reajuste seria suspenso para que se revisitassem todos os cálculos e análises. É óbvio e ululante que o aumento do preço foi cancelado por Bolsonaro, mas a Petrobras se empenhou numa pantomima destinada a fazer a plateia acreditar que, em minutos, os técnicos reexaminaram os cálculos e — bingo! — perceberam que Bolsonaro tinha toda a razão em sua aritmética.

INTERURBANO CARO - Bolsonaro e sua ferramenta de governo predileta: a ligação custou 32 bilhões de reais à Petrobras (Isac Nóbrega/PR)

O gerente executivo de marketing e comercialização da companhia, Claudio Mastella — que coordena a equipe responsável pela definição dos preços, com funcionários no Rio, Houston, Londres e Singapura —, foi escalado para a operação. No fim da ligação, Castello Branco informou aos diretores que anteciparia a volta ao Brasil para a segunda-feira. Não levou mais de meia hora para que a Petrobras alterasse o preço do diesel em seu site, voltando à cotação antiga. O que se deu a partir daí foi uma espécie de caos, no mercado e no governo. Tão logo a bolsa de valores abriu na sexta-feira, as ações da companhia começaram a derreter — no fim do pregão, a Petrobras perdera 32,5 bilhões de reais em valor de mercado — e as declarações que partiram do governo só pioraram o humor dos investidores.

Enquanto o Ministério da Economia não sabia de nada, o Ministério de Minas e Energia divulgou, em nota, que procurava “soluções estruturantes” para o aumento do combustível junto a outros órgãos do governo, para logo em seguida jurar “seu compromisso de não intervenção no mercado”. Castello Branco divulgou, também em nota, que a Petrobras era autônoma, apesar de enxergar legitimidade na preocupação de Bolsonaro. Guedes, que se encontrava nos Estados Unidos, tentou amenizar o problema no sábado com uma condicional otimista: “Se ele (Bolsonaro) fizer alguma coisa que não seja muito razoável, eu tenho certeza de que nós conseguiremos consertar”.

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Foi mesmo o que a cúpula do governo tentou fazer na segunda-feira pela manhã, ao reunir quatro ministros, dois secretários-gerais e os titulares da Petrobras, da ANP e do BNDES. Passadas algumas horas da reunião, foram anunciadas uma mentira (que o governo não interveio na Petrobras) e uma intenção (um pacote de bondades para os caminhoneiros), mas o aumento no diesel continuou suspenso. À tarde, Bolsonaro convocou a equipe para que esclarecesse a política de preços da Petrobras. Novos discursos foram feitos sobre a independência da companhia — segundo Guedes, Bolsonaro só queria alertar para a “dimensão política” do reajuste, por isso o telefonema preocupado para Castello Branco. Em seguida, o porta-voz de Bolsonaro, general Rêgo Barros, leu uma declaração do presidente: “Eu não quero e não posso intervir na Petrobras”. O preço do diesel permanecia inalterado.

HISTÓRIA É PROFESSORA - Dilma Rousseff: a intervenção nos preços trouxe prejuízo de 50 bilhões de dólares (Vanderlei Almeida/AFP)

Na quarta-feira, finalmente, Castello Branco convocou coletiva de imprensa para explicar sua decisão soberana: o diesel será reajustado em 10 centavos por litro, em média, ou 4,84%. Quase 1 ponto porcentual abaixo dos 5,74% originais, graças a uma melhora no preço do frete do combustível. Naturalmente, analistas de mercado e especialistas ouvidos por VEJA não se convenceram da independência da empresa. “Será preciso observar o que ocorre daqui para a frente, especialmente se houver risco mais concreto de greve”, diz Sergio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados.

A definição do preço dos combustíveis não é uma conta trivial nem depende de uma fórmula fechada, mas de diversas variáveis. As principais são as cotações internacionais do combustível, em dólar. Fora isso, é preciso analisar a disponibilidade e o preço dos fretes para os locais onde o produto está disponível. É um processo de análise contínua, em que as petroleiras perseguem a paridade de preço internacional, como acontece com commodities como a soja e o minério de ferro. A ex-presidente Dilma Rousseff, por exemplo, costumava argumentar que a Petrobras não tinha de perseguir a paridade de preço internacional, já que produz quase todo o petróleo em campos nacionais e o transforma em combustíveis em refinarias igualmente brasileiras. Parece fazer sentido. Só parece. A Petrobras opera em um mercado global, por isso a maioria de seus custos é cotada em dólar. Quando o barril de petróleo sobe, os preços das plataformas, das sondas e dos serviços especializados sobem junto. Ademais, a Petrobras não possui mais o monopólio de exploração e produção em campos no Brasil. Para conseguir novas áreas para explorar e produzir petróleo, como os blocos do pré-sal, a estatal tem de brigar nos leilões com concorrentes mundiais. Se vender seu único ganha-pão a preços muito baixos, não conseguirá arrematar blocos nem aqui nem na China.

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Esse é um problema antigo da Petrobras. Pelo fato de o preço do diesel influenciar direta e indiretamente a inflação, muitos governos caem na tentação de manipulá-lo. Os militares, por exemplo, criaram a “conta-­petróleo” na década de 80, como forma de compensar os prejuízos da companhia ao vender combustível mais barato do que importava. O primeiro e curto período de liberdade para a estatal definir seus preços foi em 2002, o último ano do governo FHC. A liberação dos preços de gasolina e diesel ocorreu depois de uma longa transição. Mas, quando o presidente Lula assumiu o poder, sua ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, anunciou que quem determinava o preço dos combustíveis era o governo.

Nos anos Lula, a Petrobras não teve muitos problemas nessa área. Os períodos de defasagem acabaram compensados por fases de queda do preço internacional, em que a estatal manteve seus preços mais altos. A partir de 2011, no governo Dilma, a inflação começou a aumentar, ao mesmo tempo que o preço do petróleo subia. Com uma agravante: o consumo de combustíveis dera um salto, devido à política de incentivo à venda de carros e caminhões. A situação perdurou até meados de 2014 e provocou um rombo de 50 bilhões de dólares no caixa da companhia. A entrada de Michel Temer no governo, em 2016, trouxe a estatal de volta à liberdade de preços, até que a greve dos caminhoneiros interrompeu o processo novamente em maio de 2018. Bolsonaro foi eleito prometendo uma nova era. Só falta cumprir o que diz.

Publicado em VEJA de 24 de abril de 2019, edição nº 2631

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