A investigação sobre pagamentos do PCC a um advogado do PT
Prisão de responsável pela contabilidade da facção revela indício de que dinheiro do tráfico foi usado para patrocinar ação no STF contra Sergio Moro
Lucas de Sousa Oliveira se apresentava como empresário e dizia às pessoas com quem tinha contato em Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro, que estava trabalhando para transformar em pousada sua mansão em Búzios, outra cidade do litoral fluminense, a uma hora de distância de carro dali. Ele dirigia uma caminhonete prata Mitsubishi Triton L200, modelo avaliado em cerca de 170 000 reais, quando foi cercado por policiais no dia 14 de agosto. “Vim para este fim de mundo e vocês me pegaram aqui”, reclamou, depois de soltar um palavrão. Lucas era a identidade falsa usada por Décio Gouveia Luiz, uma das principais lideranças do Primeiro Comando da Capital nas ruas brasileiras. Décio Português, como ele é conhecido, gozava da plena confiança de Marcos Williams Herbas Camacho, o Marcola, líder da facção, que cumpre pena hoje no presídio federal de Brasília. Uma das funções principais de Décio Português envolvia cuidar da contabilidade do PCC, lavando e ocultando bens e valores. Era a ele também que os chefões repassavam as missões mais importantes. No curso das investigações realizadas nos últimos meses, foram descobertas uma carta com planos para assassinar três policiais e uma mensagem no celular de Décio Português com indícios perturbadores de ligações entre o PCC e um advogado do PT, o que gerou até um pedido de quebra do sigilo fiscal e bancário do defensor do partido.
Descrito pelos policiais como um bandido inteligente, articulado e equilibrado, Décio Português dividiu durante nove anos a cela com Marcola no presídio de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo. Ganhou ali a cumplicidade do chefão e, de volta às ruas, virou um dos cérebros encarregados de lavar e investir o dinheiro ganho pelo PCC com o tráfico. A ida de Marcola e de outros 21 integrantes da facção para presídios federais, que ocorreu em 13 de fevereiro deste ano e teve o objetivo de aumentar o isolamento dos bandidos, em uma ação comandada pelo governador de São Paulo, João Doria, com o apoio do ministro da Justiça, Sergio Moro, fez com que a facção enviasse ordens de reação a Décio Português. Em uma carta encontrada com um comparsa dele, havia a orientação de organizar um plano para assassinar o delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Ruy Ferraz Fontes, e outros dois investigadores em retaliação à transferência dos chefes. No fim do manuscrito, assinado pela Sintonia Geral (a cúpula do PCC), ficava claro que a determinação era para valer: “Se não for concluída cada missão, a cobrança com nossos irmãos será a altura pagando com a própria vida”, diz o texto, na transcrição literal.
Na ação realizada em Arraial do Cabo, os policiais apreenderam com Décio Português cinco celulares. Até o momento, os investigadores conseguiram desbloquear apenas um aparelho, mas as informações contidas ali levantaram suspeitas graves sobre uma possível relação entre o PCC e um advogado que atuou em nome do PT no Supremo Tribunal Federal (STF). Professor associado da UFRJ, Geraldo Luiz Mascarenhas Prado foi mencionado em uma prestação de contas encaminhada a Décio Português pelo aplicativo WhatsApp como destinatário de 1,5 milhão de reais da facção. O pagamento seria feito para que o advogado representasse o PT numa Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra uma portaria baixada por Sergio Moro em 12 de fevereiro, um dia antes da transferência dos líderes do PCC para presídios federais. Ela determinou regras bem mais rígidas de acesso de familiares aos detentos desses estabelecimentos e ratificou a proibição de visitas íntimas para chefes de organizações criminosas.
O objetivo da medida é evitar que eles enviem, por meio dos encontros, ordens para membros da facção nas ruas. A emissão de bilhetes é o principal canal de comunicação dos chefes encarcerados com o mundo exterior. Em dezembro de 2018, duas mulheres foram presas com uma mensagem que trazia ordens para matar duas autoridades: Roberto Medina (não o do Rock in Rio, mas um dos coordenadores da Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo) e o promotor Lincoln Gakiya. Elas foram flagradas no papel de “pombo-correio” após visitarem Marcola e seu ex-companheiro de cela Maurinho em Presidente Venceslau.
No caso da mensagem encontrada no celular de Décio Português, o pedido de quebra do sigilo fiscal e bancário do advogado Geraldo Prado visa a esclarecer se ele realmente recebeu o 1,5 milhão de reais. Até a última quinta, 10, os investigadores ainda aguardavam as informações. Mas já é sabido que o advogado, em nome do PT, ingressou mesmo com a ação contra a portaria de Moro em 22 de abril. Na ADPF encaminhada ao STF há uma procuração da presidente do PT, a deputada federal Gleisi Hoffmann (PR), para que Geraldo Prado representasse o partido com outros dois advogados. A justificativa para a ação apresentada à Corte é que restringir visitas sociais, inclusive de crianças, fere tratados internacionais de direitos humanos. Essa ADPF é relatada pelo ministro Luiz Edson Fachin, que ainda não se pronunciou sobre o caso. Em nota encaminhada a VEJA, Geraldo Prado refutou as suspeitas: “É completamente falsa, absurda e maliciosa a ilação de que eu teria sido contratado por organização criminosa, com cujos integrantes nunca tive e nem tenho contato”.
Na mesma mensagem de WhatsApp encontrada em poder de Décio Português, há instruções para outros dois pagamentos relacionados à mesma tentativa de derrubar a portaria de Moro: 700 000 reais para a ONG Instituto Anjos da Liberdade e 1 milhão de reais endereçado a “Nico demos Corte interamericana”. Dirigido pela advogada Flávia Fróes, o Instituto Anjos da Liberdade atua na defesa dos direitos de presos e assinou com o advogado do PT a ADPF contra a portaria do ministro da Justiça. “Nico demos” é o advogado Carlos Nicodemos, que, também por intermédio do Instituto Anjos da Liberdade, ingressou com uma ação contra a portaria na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). A exemplo do que fez com o advogado do PT, a polícia pediu a quebra de sigilo fiscal e bancário do Anjos da Liberdade e de Nicodemos. Ambos negam qualquer vínculo com o PCC.
No celular de Décio Português constavam ainda dados sobre as finanças das “lojas”, como são chamados os pontos de venda de drogas do PCC, e um brasão do Cartel de Sinaloa, fundado por Joaquín “El Chapo” Guzmán, condenado a prisão perpétua nos Estados Unidos. Em denúncia apresentada à Justiça em 2 de outubro, o Ministério Público diz que os mexicanos fornecem drogas ao PCC, que abastece o mercado interno e a Europa. A polícia ainda encontrou no aparelho indícios de que a facção fez depósitos em dinheiro para o ex-jogador de futebol Cafu, ex-capitão da seleção brasileira. O valor total não é citado na denúncia do MP, mas a suspeita é que o PCC teria comprado um terreno de Cafu em São Paulo. Procurado por VEJA, ele negou qualquer transação. Décio encontra-se detido em Presidente Venceslau. Sua prisão está ajudando a expor as entranhas do crime organizado no país e pode revelar conexões até então desconhecidas do PCC com o mundo da política.
Publicado em VEJA de 16 de outubro de 2019, edição nº 2656