A guerra familiar em torno da fortuna de Picciani, cacique poderoso do Rio
Logo após o enterro do político, uma renhida contenda se instalou silenciosamente entre os herdeiros de seu vasto patrimônio
Por quase duas décadas, tudo o que sacudia o mundo político do Rio de Janeiro desaguava no gabinete de Jorge Picciani. Seis vezes eleito deputado estadual, o cacique do MDB ocupou a presidência da Assembleia Legislativa (Alerj) em quatro de seus mandatos, cargo de alta influência que conquistou graças à notória habilidade de costurar acordos e satisfazer os anseios de seus pares por polpudos nacos do orçamento e cadeiras no Executivo. Enquanto esteve no comando da Alerj, também ficou evidente sua espantosa capacidade de multiplicar o próprio patrimônio — desde que ingressou na vida pública, as cifras subiram 1 951%, levando em consideração apenas os valores declarados ao Tribunal Regional Eleitoral.
O apetite por negócios nem sempre republicanos chamou a atenção da Justiça, que o condenou por capitanear esquemas de propinas a deputados, corrupção passiva e lavagem de dinheiro, o que viria à luz nas operações Cadeia Velha e Furna da Onça, ambas desdobramentos da Lava-Jato. Condenado a 21 anos de prisão, em 2019, foi parar atrás das grades, repetindo a trilha já percorrida pelos ex-governadores Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, com quem dividiu poder e cultivou laços de amizade profunda. A pena, porém, não foi cumprida em sua totalidade. Com câncer de próstata, Picciani passou para o regime domiciliar e morreu pouco tempo mais tarde, em 2021, aos 66 anos.
Sua saída de cena, no entanto, não encerrou o rol de polêmicas que sempre cercou o sobrenome do todo-poderoso da política fluminense. Logo após o enterro, uma renhida contenda se instalou silenciosamente entre os herdeiros de seu vasto patrimônio. Em um dos lados do ringue estão os três filhos do primeiro casamento — Rafael, 36 anos, atual secretário de Esportes do governo do Rio; Leonardo, 44, ex-ministro do Esporte na gestão de Michel Temer e agora secretário nacional de Saneamento de Lula; e Felipe, 42, que toca os prósperos negócios do clã. No outro lado da arena se coloca Hortência da Silva Oliveira, 35 anos, com quem Picciani ficou casado por sete anos e teve um filho, hoje com 6. A disputa pelo espólio, com torpedos para todos os lados, gira em torno de uma ação que corre em segredo de Justiça na 1ª Vara de Família do Rio de Janeiro, à qual VEJA teve acesso com exclusividade. A peleja envolve a partilha da Agrobilara, holding com sede na mineira Uberaba, que concentra praticamente todos os bens acumulados por Picciani, uma fortuna detalhada no processo de março de 2023, estimada em meio bilhão de reais.
Referência na criação de gado nelore, sob o nome da empresa estão seis fazendas, em Mato Grosso, Minas Gerais e Rio de Janeiro, além de 23 imóveis, entre os quais uma cobertura a uma quadra da Praia de Ipanema e uma propriedade de 1 600 metros quadrados em um condomínio da Barra da Tijuca, ambas no Rio. O patrimônio conta ainda com um jatinho para oito passageiros, cinco picapes, três caminhões, três tratores e mais uma mineradora, a Coromandel, que explora lavras de fosfato em Minas, com capital social de 27 milhões de reais. Em 2011, Picciani decidiu repartir a Agrobilara com os três filhos e a primeira esposa, Márcia Cristina, com quem permaneceu por três décadas, reservando para si uma fatia igual. Cada parte ficou com 20% de um total declarado de 40 milhões de reais, segundo avaliação feita à época.
Casada em regime de comunhão parcial de bens, Hortência não tem direito a essa dinheirama, uma vez que a partilha se desenrolou muito antes do enlace entre ela e Picciani. O que ela alega na ação é que o filho mais novo do casal, de fora do reparte, também deve ser agraciado com um quinhão das empresas. “A divisão das cotas resultou, na prática, em uma antecipação da herança que jamais foi revista depois do nascimento do novo herdeiro”, diz o advogado de Hortência, Davi Salles. “Meu marido trabalhou quarenta anos para ter algo que meu filho está sendo impedido de desfrutar”, queixa-se a jovem viúva, que dispara: “Os filhos mais velhos querem que eu fique na mão deles, recebendo uma espécie de esmola”. Procurados, os três Picciani e seus advogados não se pronunciaram até o fechamento da edição impressa de VEJA *. Nos autos, a defesa de Rafael, Leonardo e Felipe alega que a versão da ex-madrasta é “um absoluto equívoco de compreensão quanto ao Direito Sucessório e Societário, que tangencia a má-fé”.
Outro ponto central na queda de braço entre a viúva e os primogênitos reside no valor da holding, que inchou à medida que Picciani foi pondo seu generoso patrimônio sob o guarda-chuva da empresa. A quantia de 40 milhões de reais jamais levou em consideração, por exemplo, as cabeças de gado que as fazendas reuniam no momento da morte do ex-presidente da Alerj nem os contratos de arrendamento de terra selados nesse período — um deles com o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha. “Jorge sempre me dizia que apenas uma dessas fazendas valia 450 milhões de reais”, contou a VEJA Hortência, que recém contratou um perito judicial para atualizar os valores. Com base nos bens elencados no processo, a reportagem foi checar os números e, após analisar um a um os itens do patrimônio, ouvindo respeitados profissionais do mercado imobiliário e do setor agropecuário, o montante chegou a 457,6 milhões de reais.
Foi nos corredores da Alerj que Picciani e Hortência se esbarraram pela primeira vez. A então estudante de jornalismo trabalhava como estagiária na liderança do MDB, e o relacionamento decolou. A diferença de idade entre os dois — ela, 26 anos; ele, 59 — nunca freou os namorados, que selaram a união em cerimônia cercada de pompa, na qual estiveram presentes todos os caciques da cena fluminense. Os convidados foram surpreendidos com uma coreografada dança dos noivos ao som de Xote da Alegria, do grupo Falamansa.
A moça da Zona Norte do Rio foi, a princípio, bem acolhida pelo clã e abriu os braços a outro filho que o marido tivera pouco antes, atualmente com 11 anos. “Amo todos os meus filhos, mas minha família é você e V. (inicial do nome do caçula). Talvez não tivesse força para me levantar da cama se não fosse (sic) vocês”, anotou Picciani em 2020, enquanto pernoitava em uma cela na Cadeia José Frederico Marques, em Benfica (veja trecho da carta). Hortência relata que nunca teve divergência com os enteados enquanto o marido era vivo. “Éramos uma família, vivíamos reunidos em almoços e festas”, garante.
Passados dois dias da morte do patriarca, a aparente harmonia ruiu quando os Picciani mais velhos, que ficaram com o controle do patrimônio, se recusaram a pagar os gastos com a mansão da Barra, o que levou Hortência a sair do faustoso imóvel e alugar um dois-quartos no mesmo bairro. Como esposa, ela tinha o direito de administrar o espólio, mas diz que estava abalada para conduzir as finanças e declinou. Por dois anos, conta que recebeu pensão de 25 000 reais, cortada assim que decidiu tratar do enrosco nos tribunais. Um segundo processo, já em segunda instância, pede o restabelecimento da pensão, negado há duas semanas. A viúva afirma que suas fontes de renda são o aluguel da casa onde morava e o rendimento proveniente dos 300 000 reais que manteve em conta, que vêm evaporando rapidamente. “Meu único plano B é voltar para a casa da Tijuca”, lamenta. Como se não bastasse, em meio às altas cifras em jogo, Picciani deixou um presente de grego. Contra ele, ainda pesam seis ações por improbidade, que barram a venda de qualquer um de seus bens. Apenas uma delas gira na casa dos 400 milhões de reais. Em um folhetim de desfecho imprevisível, outra viúva pode sair ganhando: a União.
Com reportagem de Lucas Mathias
* Em nota, após o fechamento da edição impressa de VEJA, a defesa dos três filhos mais velhos de Jorge Picciani, enviou a seguinte nota à redação da revista:
O inventário de Jorge Sayed Picciani tramita regularmente perante a 1a Vara de Família – Regional da Barra da Tijuca, tendo por beneficiários sua viúva meeira e seus descendentes.
Todas as etapas do inventário até o presente momento foram rigorosamente cumpridas, desde apresentação de bens, como procedimentos de avaliação, com a participação permanente do Ministério Público, face a existência de herdeiros menores.
Portanto as afirmações da Sra. Hortência, em sua rede social pessoal, não são verdadeiras.
Nenhum detalhamento dos autos, contudo, é possível a pessoa estranha ao processo, considerando o segredo de justiça existente e a presença de herdeiros menores
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2023, edição nº 2868