
No instante em que preparo esta coluna, a violência retórica torna-se física no caos nosso de cada dia. E isso numa proporção inédita em disputas políticas no Brasil. (Ditaduras eliminam ou silenciam adversários precisamente para que não haja divergências.) Nada é mais urgente do que propor um entendimento novo do agônico cenário atual.
Eis uma hipótese: atravessamos uma crise sacrificial aguda e precisamos compreendê-la, ou sua dinâmica produzirá uma violência cotidiana que não experimentamos no Estado Novo (1937-1945) e nem mesmo durante a ditadura militar (1964-1985).
A chave dessa leitura se encontra em A Violência e o Sagrado, livro de René Girard. O pensador francês criou a “teoria mimética”, explicitando o lado sombrio de um gesto considerado anódino: a imitação. Ora, sem mimetismo não haveria sociedade. No entanto, a imitação de um modelo tende a gerar rivalidades, pois desejarei os seus objetos e, ainda pior, desejarei ser mais ele do que ele mesmo…
A sociedade se torna ingovernável porque a tensão inicial se desdobra por meio do contágio mimético, empolgando o seu conjunto. Todos vivenciamos esse dilema na rotina das redes sociais e seus memes e suas viralizações e, consequência incontornável, na proliferação de “linchamentos virtuais” — vocabulário que, além de sintoma, é advertência.
A crise mimética é sacrificial porque sua superação supõe a canalização da violência, antes dispersa e ecumênica, contra um alvo: o bode expiatório, cujo sacrifício propicia o retorno da estabilidade. Mas a solução é temporária: como a violência persiste, outras crises ocorrerão, exigindo novas expiações.
A crise contemporânea não tem precedente: para os eleitores de Jair Bolsonaro, é preciso eliminar Lula e o que ele representa. E, para os eleitores de Fernando Haddad, é preciso eliminar Bolsonaro e o que ele representa. O que não se entende é a dinâmica da espiral crescente da violência mimética, que sempre escala e só pode ser contida através do sacrifício de bodes expiatórios.
Recentemente circulou um vídeo no qual o deputado Eduardo Bolsonaro afirma sem constrangimento que bastam um cabo e um soldado para fechar o STF. Pois bem: em menos de 48 horas a violência escalou. Um coronel da reserva gravou outro vídeo, muito mais irascível e absurdo, ameaçando diretamente a ministra Rosa Weber.
É esse o funcionamento do mecanismo mimético: será permanente a atmosfera de guerra. Adversários deverão ser eliminados, segundo uma retórica politicamente irresponsável e eticamente inaceitável. Contudo, entre aliados ocorrerão rivalidades fratricidas para determinar quem é o mais radical, o mais valente, o mais alguma coisa.
Independentemente do que ocorra no domingo, os primeiros gestos do presidente eleito devem ser tanto um pedido de desculpa por ter levado o país a uma polarização suicida quanto um esforço real para dialogar com o candidato derrotado.
Não temos alternativa.
Nem, menos ainda, tempo a perder.
Publicado em VEJA de 31 de outubro de 2018, edição nº 2606