Julia Mello Lotufo manteve um relacionamento amoroso com Adriano Magalhães da Nóbrega durante dez anos. No período, acompanhou a consagração dele como capitão do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), a sua expulsão da Polícia Militar e o seu ingresso no submundo do crime, no qual ele começou como segurança de contraventor, galgou postos e fez fortuna com atividades ilegais, como exploração de máquinas caça-níquel e grilagem de terras. Como era uma das poucas pessoas nas quais Adriano confiava, ela recebeu a missão de ser tesoureira do marido. Tornou-se a responsável pela contabilidade e gestão financeira de seus negócios, conforme descrição apresentada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro ao pedir a prisão de Julia, sob a alegação de que ela e outros comparsas de Adriano cometeram delitos como associação criminosa e lavagem de dinheiro. O pedido do MP teve como base um esquema de agiotagem. A pessoas próximas, Julia se declarou inocente e disse que comprovaria isso na Justiça, mas, mesmo assim, preferiu fugir. Desde a segunda-feira 22, quando foi deflagrada a Operação Gárgula, até o fechamento desta edição, era considerada oficialmente foragida.
No papel de caixa, Julia sabia da origem e do destino do dinheiro amealhado por Adriano em todos os ramos de atividade que o marido explorava. Sabia onde ele gastava seus recursos e de sua predileção por fazendas, cabeças de gado e, principalmente, cavalos de raça. Julia também sabia quem eram os laranjas de Adriano, para quais autoridades ele pagava propina e, principalmente, para quem certos contraventores e milicianos contribuíram financeiramente durante as campanhas eleitorais. Em fevereiro do ano passado, uma reportagem de VEJA revelou que Adriano confidenciou à esposa que seu grupo doou 2 milhões de reais em espécie para a campanha de Wilson Witzel ao governo do Rio de Janeiro. Não há prova conhecida de que isso tenha ocorrido. Witzel nega. Na eleição de 2018, o ex-juiz tinha como principal cabo eleitoral Flávio Bolsonaro. O ponto de contato com Witzel, conforme admitiu o próprio senador, era Fabrício Queiroz, acusado pelo MP de ser o operador da rachadinha no gabinete do Zero Um quando ele era deputado estadual.
Queiroz, como se sabe, era amigo de longa data de Adriano. Os dois trabalharam juntos na Polícia Militar e pediram votos para a família Bolsonaro a colegas de farda e em áreas controladas por milicianos. A amizade abriu uma janela de oportunidades. Era comum Adriano receber Queiroz para tratar de assuntos financeiros. Julia fazia a contabilidade dos encontros. Cada acerto ao longo dos anos foi devidamente registrado. Um deles, conforme revelado por VEJA, foi um pedido de ajuda para pagar as contas do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, no qual Queiroz fez uma cirurgia para a retirada de um câncer. A conta hospitalar foi de cerca de 135 000 reais. Adriano aceitou colaborar com 80 000 reais, entregues ao parceiro em dinheiro vivo. Eles também se reuniam para tratar do lado pecuniário da rachadinha. Pelas mãos de Queiroz, a mãe e a ex-mulher de Adriano — respectivamente, Raimunda Veras e Danielle Mendonça — foram contratadas pelo gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio e, segundo o MP, devolveram parte de seus salários a Queiroz. Até restaurantes de Adriano registrados em nome da mãe dele eram usados para as transações financeiras entre eles. Julia conhece os detalhes de todas essas operações.
No universo do crime, Adriano construiu um patrimônio de pelo menos 10 milhões de reais. Só em Tocantins ele tinha três fazendas registradas em nome de terceiros. Uma delas foi vendida meses depois de sua morte por 800 000 reais pelo laranja que aparecia formalmente como proprietário. As receitas mensais do ex-capitão variavam de 250 000 reais a 350 000 reais, desconsiderando o valor movimentado pelo esquema de agiotagem agora denunciado pelo MP. Também havia um gasto mensal de cerca de 80 000 reais com a “segurança” de seus negócios, o que incluía a distribuição de propina a agentes da lei. Alvo de uma ordem de prisão, Adriano se tornou foragido e ficou um ano escondido da Justiça até ser morto numa ação policial em fevereiro de 2020. Julia ficou com o marido até a véspera de sua morte. Os dois se encontraram na Costa do Sauípe, no litoral da Bahia, para passar as festas de fim de ano e aproveitar o que seriam férias para ela. Julia levou para a viagem a prestação de contas dos meses de setembro, outubro e novembro de 2019. Havia ali, por exemplo, quanto cada apartamento construído ilegalmente em áreas controladas pela milícia rendia de aluguel. Ou ainda o faturamento dos pontos de jogo.
O casal aproveitava a casa de veraneio quando foi surpreendido por uma batida da polícia. Enquanto conversava com a mulher, Adriano viu homens entrando no terreno e fugiu pelos fundos. Julia e a filha ficaram sob as armas e as perguntas dos policiais. Ela tinha dois pen drives numa bolsa. Um deles desapareceu após a ação. Adriano foi resgatado a 30 quilômetros do local por um amigo, o fazendeiro Leandro Abreu Guimarães, com quem compartilhava o gosto por vaquejadas. Foi Leandro quem o levou para o município de Esplanada (BA). Julia também se dirigiu para lá e ficou com o marido até horas antes de sua morte. No dia 8 de fevereiro de 2020, ela e a filha pegaram a estrada de volta para o Rio de Janeiro numa Hilux branca, tendo como motorista um funcionário de Leandro. A caminhonete chegou a passar por um scanner para que tivessem a certeza de que não haviam acoplado um rastreador nela. Na estrada, foram parados por uma blitz da Polícia Rodoviária Federal. Pressionado pelos policiais, o motorista disse que era funcionário de Leandro e, assim, entregou o paradeiro de Adriano. Julia ainda avisou o marido por mensagem. Horas depois, na manhã do dia seguinte, ele foi morto pela polícia.
A versão oficial é de que Adriano resistiu a uma ordem de prisão, disparou com uma pistola contra os policiais e morreu após ser atingido por dois tiros, um de carabina e outro de fuzil. Julia sempre disse que ele foi torturado e executado, e não abatido em decorrência de um confronto. Em entrevista a VEJA dias antes da morte do marido, chegou a afirmar de forma enfática que ele seria assassinado como queima de arquivo. O Ministério Público da Bahia investiga até hoje as circunstâncias da morte. Agora, é a vez de Julia declarar que não se entrega porque, além de ser inocente, teme ser morta, exatamente a mesma alegação que era apresentada por Adriano quando ele estava foragido. A possibilidade de execução não pode ser desconsiderada. Conforme VEJA revelou em seu site, um sargento próximo de Adriano, que como Julia teve a prisão pedida pelo MP e determinada pela Justiça, foi assassinado na porta de casa na manhã do último sábado, 20.
“A defesa de Julia Mello Lotufo nega todas as acusações que lhe são atribuídas. Ela nunca teve qualquer participação em eventuais condutas ilegais que possam ter sido praticadas por seu falecido marido”, disseram por meio de nota os advogados Délio Lins e Silva e Délio Lins e Silva Jr. “Ela teme pela sua vida e pela vida de sua filha, razão única pela qual ainda não se entregou.” Em outras pendências judiciais, o advogado da família era Paulo Catta Preta, que também defende Queiroz e foi indicado para ambos os clientes por Frederick Wassef, o advogado do clã Bolsonaro. A viúva é, de fato, guardiã de muitos segredos.
Atualização: O advogado Frederick Wassef encaminhou a seguinte nota a VEJA: “Não indiquei nenhum advogado para estas pessoas mencionadas na matéria e nada tenho a ver com esta história”. O advogado Paulo Catta Preta também se manifestou: “Esclareço que não me consta a informação de que Frederick Wassef tenha me indicado para a defesa de Fabrício Queiroz”.
Publicado em VEJA de 31 de março de 2021, edição nº 2731