A briga na família de Chico Anysio em torno de uma dívida de R$ 7 milhões
Dez anos depois de sua morte, o patrimônio do humorista não chega a pagar os gastos acumulados. Segundo os filhos, a culpa é da viúva, Malgarette
Um dos grandes nomes da história do humor no país, criador de mais de 200 personagens ao longo de 65 anos de carreira, Chico Anysio morreu em março de 2012, aos 80 anos, deixando viúva e oito filhos com diferentes mulheres — os quais, seguindo o roteiro infeliz, mas tão comum nesses casos, agora travam uma batalha na Justiça. O que está em jogo não é a fortuna do humorista, que virou pó. A questão agora é como pagar a vultosa dívida que se acumulou em uma década de má gestão do patrimônio. Os filhos e Malgarette Dall Agnol de Oliveira Paula, a Malga, última mulher de Chico, repartiriam bens avaliados em 4 milhões de reais. Em vez disso, estão tendo de administrar uma dívida de 7 milhões de reais, boa parte em impostos atrasados.
Desse total, 1,4 milhão de reais em IPTU e condomínio não pagos são responsabilidade direta de Malga, que exerceu a função de inventariante por cinco anos e é acusada de lesar os demais herdeiros. A fatura, porém, pode ser bem maior. “Não sabemos precisar o montante que desapareceu do espólio porque não houve prestação de contas. Só isso já configura apropriação indébita — para não falar em furto”, afirma o advogado Roberto Edward Halbouti, representante de cinco dos herdeiros. “Não recebi nada, nem 1 centavo”, rebate Malga.
Em meio aos disparos da artilharia familiar, VEJA teve acesso com exclusividade a duas ações ajuizadas na 2ª Vara de Família da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde está o inventário. Em uma delas, de 2018, os filhos pedem que a madrasta preste esclarecimento de tudo o que foi (ou deveria ter ido) para a conta do inventário e de como usou os bens — três lojas no shopping Barra Garden e um apartamento de quatro quartos no Condomínio Península, na Zona Oeste carioca — entre 2012 e 2017, quando geriu o patrimônio. O documento lista uma série de irregularidades. Malga teria alugado tanto as lojas quanto o apartamento (no qual morou com Chico Anysio e do qual possui 50%) sem depositar o dinheiro recebido na conta judicial. Também levantou “o valor de 168 075,23 reais em 31 de maio de 2012 (pouco depois da abertura do inventário) para quitar dívidas médicas e trabalhistas” — parte dele depositado pela TV Globo — e nunca pagou ninguém. Oito profissionais de saúde que atenderam o artista no Hospital Samaritano, onde ele morreu de falência de múltiplos órgãos, recorrem à Justiça para receber os honorários que, em valores atuais, somam meio milhão de reais. E mais: a defesa dos herdeiros diz que Malga foi procurada por oficiais de Justiça em dois endereços no Rio, dois em São Paulo e um no Rio Grande do Sul e escapou deles em todas as ocasiões.
Refugiada na casa dos pais, no Sul do país, ela falou com VEJA por telefone e alegou que isso não aconteceu. “Eu nem sei por que um oficial de Justiça viria atrás de mim. Não é só falar com meus advogados?”, questiona. Malga se diz esgotada pelo enrosco familiar. “Eu não os agrido. Já eles disseram que sou mentirosa e até roubei. Não tenho mais saúde mental, passei por duas internações psiquiátricas”, diz a viúva de 52 anos, quatorze deles casada com Chico Anysio. Além da ação referente ao período em que ela foi inventariante — cargo do qual foi destituída e substituída por um dos filhos do humorista, o ator Bruno Mazzeo —, os herdeiros movem um segundo processo em que pedem, desde 2020, a reintegração de posse do apartamento da Barra que Malga havia alugado a terceiros. No momento, o imóvel está fechado, com móveis sendo devorados por cupins e seis carros, entre eles um Honda blindado, enferrujando na garagem. Como a herança de um ícone da TV que, segundo a própria viúva, tinha salário de 600 000 reais chegou a esse ponto? Malga, sexta mulher no humorista, afirma que nunca deixou dívidas, que foi “roubada” por um advogado e que os enteados sabem disso.
Halbouti rebate ponto a ponto essa versão. Segundo ele, a conta do espólio estava zerada quando Mazzeo assumiu o controle do patrimônio. Até os direitos autorais que a TV Globo paga ao inventário — que somam, por baixo, 100 000 reais anuais — haviam evaporado. De acordo com Halbouti, não se sabe nem quanto Chico tinha no banco ao morrer, já que tudo era controlado por Malga. “Ele entregava toda a parte burocrática nas mãos da mulher, que nem sequer providenciou sua declaração de imposto de renda nos últimos três anos de vida”, enfatiza. A maior parte da dívida atual — 5 milhões de reais, diz ele —, aliás, se refere a tributos pendentes de uma das empresas em nome do humorista, da qual a viúva teria vendido sua parte já com o marido doente.
O próprio inventário sofreu reviravoltas. O testamento deixado por Chico Anysio foi anulado em 2019 por não constar o nome do filho Lug de Paula, o Seu Boneco — a Justiça brasileira não permite que um herdeiro necessário seja alijado. Malga sustenta que o desejo do marido era que ela ficasse com os bens materiais e os filhos, com o seu patrimônio intelectual, o que eles não aceitam. A relação entre as duas partes azedou ainda mais quando Malga, que oferece na internet cursos de como se tornar uma “influenciadora vegana”, falou em um podcast especializado no tema e destilou comentários sobre os enteados. “Alguns foram mais radicais e não quiseram sentar para conversar. Um deles (Cícero Chaves) morreu enquanto eu estava em coma (ela teve Covid-19 no ano passado). Olha que ironia. Ele tinha 39 anos e ficou brigando comigo durante quase dez anos para ter algo que não irá receber”, comentou. Em seu Instagram, outro irmão, o ator Nizo Neto, se mostrou horrorizado: “Essa declaração, usando o nome do meu falecido irmão, foi realmente um golpe baixo”. Procurado, Nizo disse que “não tinha nada mais a falar”. Os advogados de Malga, Carlos Sanseverino e Denise Giardino, não responderam às perguntas da reportagem. Enquanto a briga pelo inventário e pela posse dos bens segue na Justiça, a dívida — bem maior do que tudo o que está em litígio — cresce sem parar. Sem dúvida, é uma história sem nenhuma graça.
Publicado em VEJA de 6 de abril de 2022, edição nº 2783