Bolsonaro busca um pretexto para reviver o fantasma de 1968
O regime militar usou um discurso desimportante para baixar o AI-5. O presidente parece ir na mesma linha
No dia 2 de setembro de 1968, o deputado federal Marcio Moreira Alves, então com 32 anos, fez um discurso durante o pinga-fogo, como é conhecido o horário para os pronunciamentos do baixo clero. Ele protestou contra a invasão policial que acontecera dias antes na UnB e propôs um boicote aos desfiles do Sete de Setembro. “Seria necessário que cada pai, cada mãe, se compenetrasse de que a presença dos seus filhos nesse desfile é o auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas. Portanto, que cada um boicote esse desfile”, discursou. “Esse boicote pode passar também, sempre falando de mulheres, às moças. Aquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje, no Brasil, que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa àqueles que vilipendiam-nas. Recusassem aceitar aqueles que silenciam e, portanto, se acumpliciam.” Com exceção da então pouco importante Folha de S. Paulo, nenhum jornal registrou o discurso e não há notícias de boicotes aos desfiles.
Mas no discurso desimportante estava a semente da pior crise institucional do último meio século. Num ofício do presidente general Costa e Silva, o ministro Lyra Tavares reconheceu que o deputado estava “no uso da liberdade que lhe é assegurada pelo regime”, mas pediu a “proibição de tais violências e agressões verbais injustificáveis”. Em dezembro, por 216 votos contra 136, a Câmara dos Deputados negou o pedido para o governo processar o deputado. No dia seguinte, foi editado o AI-5, o mais duro instrumento de repressão e perseguição política desde a ditadura Vargas.
O discurso de Marcito, como o deputado e jornalista era conhecido, foi só um subterfúgio. O regime havia perdido o apoio popular obtido no Golpe de 1964, apanhando em seguidas manifestações pró-democracia, como a histórica marcha dos 100 mil em junho daquele ano, em frente à igreja da Candelária, no Rio. A guerrilha urbana já fazia vítimas e as manifestações populares pelo mundo, com as de maio na França, assustavam os generais.
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Clique e AssineInternamente, o governo do general Costa e Silva era pressionado a baixar uma perseguição sem limites por gente como o brigadeiro João Paulo Burnier, que tinha um plano para uma série de atentados, incluindo a explosão da embaixada dos EUA e do gasômetro da Avenida Brasil, culpando os oposicionistas. Nos planos de Burnier, a partir das bombas o governo teria licença para uma matança de oposicionistas, de estudantes a comunistas e ex-apoiadores do Golpe, como o ex-governador Carlos Lacerda e o general Mourão Filho.
Herdeiro da anarquia militar de Burnier (foi obrigado a entrar na reserva depois de preparar plano para explodir bombas em quartéis por reivindicação salarial), o presidente Jair Bolsonaro está em busca de um novo Marcito, atrás de um pretexto para empurrar o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional contra a parede.
Nesta quinta-feira, 28, Bolsonaro disse que “Não teremos outro dia como ontem, chega!”, se referindo à ação policial ordenada pelo Supremo Tribunal Federal de busca e apreensão nas casas de militantes bolsonaristas acusados de propagar discurso do ódio, sustentar correntes de WhastApp e páginas de Facebook com difamações e ameaças a vida de juízes, políticos e jornalistas e sustentar manifestações de rua contra a democracia. “Temos que botar um limite nessas questões. Não podemos falar em democracia sem um Judiciário independente, sem um Legislativo também independente, para que possam tomar decisões, não monocraticamente por vezes, mas as questões que interessam ao povo como um todo, que tomem, mas de modo que seja ouvido o colegiado. Acabou, porra! Me desculpem o desabafo. Acabou! Não dá para admitir mais atitudes de certas pessoas individuais, tomando de forma quase que pessoal certas ações”, afirmou o presidente.
A declaração é nova etapa de um confronto direto do Planalto com o Supremo que retoma o fantasma de uma intervenção militar. Em março, o STF decidiu que governadores e prefeitos têm o poder para impor quarentenas e interdições ao funcionamento de escolas e empresas, acabando com a estratégia presidencial de manter a economia aberta mesmo com a pandemia de coronavírus. Nesse momento, Bolsonaro começou a ganhar apoio até entre generais reticentes para a tese que o STF estava invadindo o seu poder.
Essa tese ganhou as ruas dos atos pró-ditadura com as decisões do STF de impedir a nomeação do novo diretor da PF, investigar as denúncias do ex-ministro Sergio Moro de interferência presidencial para favorecer os filhos e, agora, investigar os sites dos bolsonaristas. Como revelou o colunista de O Globo Alcelmo Gois, há suspeita no STF de que, para bajular o presidente, um grupo de empresários mantenha uma espécie de mensalão para sustentar esse sites e youtubers.
Na versão do presidente, a ação do STF foi pessoal. “Querem tirar a mídia que eu tenho a meu favor sob o argumento mentiroso de fake news”, disse. Está claro para o presidente e seus assessores que o inquérito das fake news irá chegar ao seu filho Carlos, responsável pela estratégia digital do governo.
Outro filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro foi mais explícito que o pai: “Quando chegar a um ponto que o presidente não tiver mais saída e quando for necessário uma medida enérgica, ele é que será taxado como ditador”. Na semana passada, o ministro general Augusto Heleno já havia feito ameaça similar, prevendo “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional caso o STF decidisse pela apreensão do celular do presidente”.
As intimidações do presidente, seu filho e seu ministro empurram o país para um impasse. As notas de repúdio e editoriais de jornais nunca serviram para barrar desejos autoritários, mas nem os ministros do STF, nem os líderes no Congresso sabem o que fazer. Os otimistas acham que Bolsonaro só ameaça, mas não teria o apoio da caserna para uma ação real contra as instituições. Os realistas sabem que parte majoritária do Exército considera o presidente um dos seus e está pronta a defendê-lo, mas que a intervenção militar sofre resistências. Os pessimistas acham que é tudo questão de tempo e o presidente só precisaria de um Marcito de 1968, de um pretexto, para avançar.