Querido diário da quarentena
Dia 6 - Eu tenho certeza de que o vidro de maionese quer me derrubar!
Dia 1 – Primeiro dia. Comecei me preparando com uma lista de livros para ler. Mas por enquanto a única coisa que estou lendo são receitas. Preciso aprender a fazer arroz fora do saquinho. Tenho fé.
Dia 2 – Tenho tentado aproveitar esse tempo para aprender coisas que nunca consegui. Jogar xadrez, por exemplo. Vi vídeos no YouTube. O problema é que o Max não é um bom adversário. Max é meu labrador. Ele já comeu três peças.
Dia 3 – Resolvi fazer as pazes com o Max. Rodeei meu cachorro três vezes, mas ele não me levou para passear. Estou com um problema grave. Quebrei todas as panelas ontem no panelaço. Não sei como fazer para cozinhar.
Dia 4 – Hoje o governo anunciou a suspensão de salário por quatro meses. Fiquei pensando no Flávio Bolsonaro. Se vai ser difícil pra todo mundo, imagine pra ele, que vai deixar de receber os salários de seus assessores. Fiz as contas e a única maneira de não precisar de salário por quatro meses é eu pegar coronavírus e morrer. Comecei a pesquisar sobre seres humanos que conseguem fazer fotossíntese. No fim do dia voltaram atrás. Uma pena. Estava tendo progressos.
Dia 5 – Pensei em pedir alguma coisa pelo delivery. Pedi um abraço. Nenhum entregador topou o serviço. Então pedi farmácia. Recebi o entregador com máscara e luvas, disposto ao mínimo contato possível. Mas quando ele perguntou “crédito ou débito?” eu senti que ele queria conversar. Nessas horas é preciso dar apoio e falar sobre o que realmente importa. Então puxei assunto sobre BBB. Péssima ideia: ele era fã do Daniel.
Dia 6 – Eu tenho certeza de que o vidro de maionese quer me derrubar! Ele aliou ao abridor de latas numa guerra contra mim. Quem me contou foi minha escova de dentes. Hoje à noite vou propor uma salva de palmas na janela para os funcionários da creche.
Dia 7 – Parei de ver os noticiários pra não ficar nervoso, mas chega tudo pelos grupos de zap. Parei de ver os grupos de zap, mas minha mulher me conta tudo. Pra não ver minha mulher simulei tosse e febre e me tranquei no quarto. Comecei a fazer exercícios acompanhando o vídeo que um amigo mandou. Como sou sedentário, eu me cansei, perdi o fôlego, achei que era Covid e corri pro hospital. No meio do caminho lembrei que eu só estava fingindo para minha mulher e voltei.
Dia 8 – Fiz as contas hoje e percebi que vou ficar uns 5 meses sem visitar minha mãe. Ok, já tem um ano que não a vejo mesmo. Recebi um SMS do banco, lavei as mãos depois de ler. Fiquei na dúvida, depois de lavar as mãos, se não devemos lavar as mãos. Vai que o sabonete esteja contaminado.
Dia 9 – Não vejo a hora de isso tudo acabar, voltar ao trabalho e poder ficar o dia inteiro em casa no fim de semana de novo. Um tédio total. Mas no fim do dia tive um alento. Recebi o trote do falso sequestro. Fiquei meia hora ao telefone com o bandido mesmo com meus filhos todos na minha frente.
Dia 10 – Agora é real. Estou me sentindo muito mal. Falta de ar, cansaço enorme, aperto no peito e muita náusea. Acabei de ver o pronunciamento do Bolsonaro.
Publicado em VEJA de 1 de abril de 2020, edição nº 2680