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Por Roberto Pompeu de Toledo
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Duas pestes

Pergunta-se hoje como será o mundo pós-Covid-19. O 'Decamerão', livro do imediato pós-peste negra, oferece pistas.

Por Roberto Pompeu de Toledo Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 20 jun 2020, 08h17 - Publicado em 22 Maio 2020, 06h00
CONFORTADOR –  Boccaccio: aula
de como se portar numa quarentena (Stock Montage/Getty Images)

O ano de 1348 marca a eclosão da peste na “mui excelsa cidade de Florença, cuja beleza”, nas palavras de seu devotado filho Giovanni Boccaccio, “supera a de qualquer outra cidade da Itália”. Ao contrário do que ocorrera no Oriente, onde se iniciara a doença, cujo primeiro sinal era o sangue a escorrer do nariz, em Florença no começo apareciam algumas inchações nas virilhas ou nas axilas. “Algumas dessas cresciam como maçãs; outras, como ovo; cresciam umas mais, outras menos; chamava-as o populacho de bubões.” Das virilhas e axilas os inchaços se espalhavam por toda parte. “Em seguida o aspecto da doença começou a alterar-se; começou a colocar manchas de cor negra ou lívida nos enfermos.” O que não se alterava é que, num caso como noutro, era anúncio de morte certa.

As descrições de Boccaccio (1313-1375), “primeiro grande realista da literatura universal”, segundo Otto Maria Carpeaux, estão no Decamerão, sua obra-prima. Os 672 anos que nos separam da chegada da peste negra a Florença não passaram em vão. Mas em alguns aspectos a pandemia de então e a pandemia de hoje se aproximam, a começar na variedade dos sintomas iniciais — no caso da Covid-19, febre ou dificuldade de respirar, perda do olfato ou tosse seca. Se os médicos foram na atual peste apanhados no contrapé, perdidos no esforço de decifrá-la, com mais razão o foram na Idade Média. “Nem conselho de médico, nem virtude de mezinha alguma, parecia trazer cura ou proveito para o tratamento de tal doença”, escreve Boccaccio. “Tornara-se enorme a quantidade de curandeiros, assim como de cientistas. Contavam-se entre eles homens e mulheres que nunca haviam recebido uma lição de medicina” (tradução de Torrieri Guimarães).

“Eram incontáveis os que partiam desta vida sem nenhuma testemunha”

No curandeiro sem noção de medicina o autor italiano parece pressagiar o comportamento, no ano 2020, do presidente de um país ainda a mais de um século e meio de ser descoberto pelos europeus. A peste em Florença avançava entre as vítimas “como o fogo passa às coisas secas ou untadas”. Na peste de hoje alerta-se também contra as coisas, com destaque para maçanetas e barras de apoio nos ônibus e trens. Em Florença, “mexer nas roupas, ou em qualquer coisa que tivesse sido tocada ou utilizada pelos enfermos”, podia ser fatal. “E tudo era dirigido para um fim bastante cruel: o de se ficar enojado dos enfermos, e de se fugir das suas coisas e deles.” Como hoje, os parentes não se visitavam. E “eram incontáveis os que partiam desta vida sem nenhuma testemunha”.

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Temos hoje ciência muito mais avançada, antibióticos, anestesia, televisão e internet, mas também coincidências com o século XIV que provam, para nosso grande espanto, a persistente fragilidade da espécie. Na Guaiaquil da Covid-19 corpos eram arrastados para as ruas. Na Florença da peste negra vizinhos “retiravam das residências os cadáveres”, e os deitavam à porta, “onde, sobretudo na parte da manhã, eram vistos em quantidade inumerável pelos que perambulavam pela cidade e que, observando-os, adotavam medidas para o preparo e o envio dos caixões”. Na Manaus de hoje caixões são enfileirados em covas coletivas e cobertos de terra lançada por tratores. Na Florença de Boccaccio os corpos “eram empilhados como as mercadorias nos navios; cada caixão era coberto, no fundo da sepultura, com pouca terra; sobre ele, outro era posto, o qual, por sua vez, era recoberto, até que se chegasse à boca da cova, ao rés do chão”.

Pergunta-se hoje como será o mundo pós-Covid-19. O Decamerão, livro do imediato pós-peste negra, oferece pistas. A descrição da peste em Florença ocupa apenas alguns de seus parágrafos iniciais. O assunto muda em seguida para um grupo de sete mulheres e três homens que, num refúgio campestre nos arredores da cidade, pratica o que 672 anos depois seria chamado de “isolamento social”, e, à falta de uma Netflix para ver séries, decide passar o tempo a contar histórias uns aos outros. O Decamerão é o volumoso repositório das 100 histórias resultantes, à razão de dez por pessoa, durante dez dias — histórias muitas delas cômicas, de espertos a passar a perna nos tolos, e de muito sexo, com maridos enganados, mulheres ardentes, padres e freiras devassos. Mostra um mundo tão terreno quanto era celeste o padrão medieval precedente, a começar por Dante Alighieri, que viveu no mesmo século mas morreu antes da pandemia. Nesse ponto o livro aponta para a mudança. Já a quem, hoje em dia, espera um mundo pós-Covid-19 mais solidário e generoso, o recado do Decamerão é desanimador. Boccaccio pinta um quadro de injúrias, traições e trapaças sem fim.

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 27 de maio de 2020, edição nº 2688

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