No pronunciamento de terça-feira 24, Jair Bolsonaro reiterou seus argumentos sobre o coronavírus: há exagero e histeria; a imprensa promove o pânico; aqui será diferente da Itália; a cloroquina vai funcionar; a pandemia “brevemente passará”. Contrariou seu ministro da Saúde, pregou a volta à normalidade, atacou os governadores e exigiu que suspendessem o isolamento, reabrissem comércio e escolas, restabelecessem os transportes.
Bolsonaro preocupa-se com a economia, mas não só com ela. “Se afundar a economia, acaba com o meu governo, é uma luta de poder”, declarou na semana passada. A preocupação com a economia é irretocável: não basta salvar a vida dos brasileiros, é preciso impedir que se arruínem. A vontade de salvar seu governo é menos nobre, mas legítima. O que choca é que Bolsonaro dê mais valor à sobrevivência de seu governo que à de seus governados e que enxergue no esforço de salvar vidas somente luta política.
A ideia de que não é preciso parar o país completamente por causa de uma doença relativamente pouco letal, de que se pode flexibilizar gradualmente o isolamento até alcançar a imunidade de rebanho, faz sentido. Para isso, entretanto, é preciso que a propagação do vírus seja zero e que o sistema de saúde não esteja em colapso — o que exigirá isolamento total durante algum tempo (se tivéssemos começado antes, seriam poucas semanas).
Surpreende que Bolsonaro não faça o cálculo do custo político de sua atitude
Flexibilizar o isolamento neste instante — em que os casos crescem exponencialmente e o colapso do sistema de saúde é inevitável — é a certeza do desastre. Sem hospitais, a quantidade de mortos (em grupos de risco ou não, por causa do vírus ou não) será imensa; muitos médicos, mais expostos, morrerão, agravando o problema. Virá o pânico, todos se trancarão em casa e deixarão de trabalhar (que é justamente o que se quer evitar). Teremos centenas de milhares de mortos, milhões de trabalhadores perderão seus parentes, o país mergulhará na dor e na paralisia. O custo de flexibilizar o isolamento prematuramente pode ser ainda maior que o custo de mantê-lo.
Para alguém que tanto se preocupa com o poder, é surpreendente que Bolsonaro não faça o cálculo do custo político de sua atitude. Se houver muitas mortes e o eleitorado as associar ao boicote presidencial ao isolamento, seu desgaste será irrecuperável. Se as mortes ficarem controladas e o eleitorado perceber que isso se deve ao isolamento feito — à sua revelia — pelos governadores, seus rivais terão enorme ganho (João Doria já é hoje uma figura muito maior do que era uma semana atrás). É um cenário perde-perde.
E, quanto mais Bolsonaro ataca o isolamento, mais ele próprio se isola: estão contra o presidente a classe política (até os aliados), o STF, a imprensa, boa parte do alto oficialato, uma enorme parcela do empresariado, do mercado financeiro e da população. Com o aumento das mortes, até o apoio do núcleo duro declinará.
Bolsonaro jogou suas fichas na convicção de que conseguirá flexibilizar o isolamento e de que haverá poucas mortes. É uma jogada arriscada, que pode acabar lhe custando o cargo.
Publicado em VEJA de 1 de abril de 2020, edição nº 2680