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Vinte anos sem Renato Russo, o ídolo rebelde e sofrido

Em 11 de outubro de 1996, o artista que "nomeou a sujeira e o vazio de sua época" sucumbia a complicações decorrentes da aids

Por Daniel Jelin Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 jul 2020, 21h36 - Publicado em 11 out 2016, 09h00
Vinte anos sem Renato Russo, o ídolo rebelde e sofrido

Renato Russo: “A morte está perto e quero aproveitar ao máximo”. Foto: Oscar Cabral/VEJA

VEJA de 16 de outubro de 1996

VEJA de 16 de outubro de 1996

Há exatos 20 anos, morria o líder da Legião Urbana, Renato Russo, vítima de complicações pulmonares e renais decorrentes da aids. Reportagem de capa de VEJA relatou os últimos dias do “artista rebelde que com versos e rock nomeou a sujeira e o vazio de sua época”.

Na tarde de domingo passado, o telefone tocou no apartamento do cantor e compositor Renato Russo, líder da banda Legião Urbana, em Ipanema. Ele atendeu. Do outro lado da linha estava o ator Marcelo Berê, querendo saber notícias do amigo. “Estou mal e eu não posso mais nem falar”, disse-lhe Russo com um fiapo de voz e passou o fone para o enfermeiro que estava ao seu lado. Na sexta-feira passada, o corpo de Russo era transportado do apartamento para o cemitério do Caju, onde, conforme as instruções que dera à família, seria cremado no sábado. Renato Russo morreu à 1h15 da madrugada de sexta-feira, vítima de complicações pulmonares e renais decorrentes da Aids. Aos 36 anos, desapareceu como um dos mais bem-sucedidos artistas da MPB dos últimos quinze anos, com 5 milhões de discos vendidos. Calava-se o artista rebelde que com versos e rock nomeou a sujeira e o vazio de sua época.

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Renato Russo foi mais do que um sobrevivente da explosão do rock nacional dos anos 80. Autor de todas as letras do Legião Urbana e homem de frente nos shows da banda, ele desenvolveu uma notável habilidade para traduzir as emoções e a inquietude dos jovens brasileiros de mais de uma geração. Seu público atual não era feito de trintões e quarentões nostálgicos, mas de adolescentes para os quais as mensagens de Russo continuavam a ser palavras de ordem. Em suas letras e interpretações, falava de amor como os jovens gostariam de saber falar. Bradava contra a miséria familiar como seu público gostaria de fazer na sala de jantar de casa. E, quando virava seu olhar para o governo e os políticos, enunciava opiniões às vezes extremadas, às vezes ingênuas, mas sempre raivosas. Esse era o segredo de sua popularidade.

A edição de VEJA de 16 de outubro de 1996 destacava cinco frases ditas pelo cantor ao longo daquele ano, segundo relato dos amigos.

  • Em janeiro: “Quando chegar aos 50 anos, vou escrever meu livro”.
  • Em julho: “Depois desse trabalho (referindo-se ao último disco, A Tempestade), eu quero descansar”.
  • Dois meses antes de sua morte: “A morte está perto e quero aproveitar ao máximo este momento para aprender com a própria vida e com a morte”.
  • Um mês antes: “Quando eu tomo o coquetel (de AZT e outros) é como se tivesse comendo um cachorro vivo. E o cachorro me come por dentro”.
  • Cinco dias antes: “Estou mal e eu não posso mais nem falar”.

A reportagem de VEJA examinava também a trajetória artística de Renato Russo:

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VEJA de 16 de outubro de 1996

VEJA de 16 de outubro de 1996

Poesia e contestação se fundem num resultado muitas vezes desconcertante na obra deixada por Renato Russo. Para dar vazão a seu universo conflituoso, Renato tomou emprestados versos de Camões, descreveu amores absurdos, passou lições de moral. Às vezes foi também repetitivo e até um pouco canastrão. Mas sempre manteve o controle sobre sua carreira, indiferente ao mito criado pelo fanático público da banda que ele liderou. O Legião Urbana era do contra — vendeu seus 5 milhões de discos sem nunca ter adotado procedimentos recorrentes da indústria fonográfica. Jamais quis tocar em festivais patrocinados por grandes empresas. Raríssimas vezes compareceu a programas de auditório em que seus colegas de profissão batem cartão para empurrar as vendas de discos. Raramente fazia shows e dava de ombros para os gêneros musicais em voga no mercado. Não usava o surrado recurso baiano de inventar polêmicas na imprensa sempre que lançava um disco. Adotou uma postura que nenhum outro artista ou grupo arriscaria. Talvez por isso tenha preservado sua autenticidade e carisma.

Renato Russo escreveu alguns dos hinos da geração roqueira dos anos 80. Será, música tocada em literalmente todos os shows do Legião por exigência dos fãs, Ainda É Cedo, Tempo Perdido, Pais e Filhos e uma dezena de outras canções que arrebataram o coração de estudantes. O estilo musical do grupo foi definido no álbum Dois, de 1986. O disco vendeu mais de 1 milhão de cópias e emplacou vários sucessos nas rádios, obrigando as emissoras a colocar no ar uma música de quase oito minutos — Eduardo e Mônica —, o que é totalmente fora dos padrões radiofônicos. Se com o grito de protesto Renato excitou a juventude, sua maior contribuição viria com a maturidade de seus versos. Isso fica claro no disco As Quatro Estações, de 1989. É nele que estão as letras mais densas de Renato, e também onde ele revela suas fontes de inspiração — um anônimo hindu, a Bíblia, Bukkyo Dendo Kyokai, Luís de Camões, entre outros. “O resultado da música que ele fez sobre o soneto de Camões é belíssimo, além de ser um procedimento pouco usual no ambiente do rock”, diz o compositor e professor de letras José Miguel Wisnik.

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VEJA de 27 de março de 1985

VEJA de 27 de março de 1985

Estreia em disco – VEJA acompanhou a trajetória bem sucedida da Legião desde seu primeiro disco, de 1985.

Reportagem de 27 de março daquele ano observava a euforia roqueira em Brasília e retratava a banda de Renato Russo como o melhor exemplo do estilo brasiliense, “que não usa o bom humor como principal ingrediente”e guarda distância “dos acordes românticos de Lulu Santos ou do Kid Abelha”.

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“A gente começou tocando rock com três acordes e hoje ainda não somos grandes músicos”, admitia Renato.

VEJA de 19 de junho de 1988

VEJA de 19 de junho de 1988

Se os discos eram bem recebidos pela crítica, os shows da Legião, imprevisíveis, nem sempre terminavam bem. Um deles ficou particularmente famoso: em junho de 1988, um show para 42 mil pessoas no estádio Mané Garrincha, em Brasília, terminou com mais de 200 feridos – nenhum em estado grave. “Aquele que deveria ser um dos maiores concertos de música da história da cidade transformou-se em uma sequência de atitudes desastradas que começou com a organização precária, prosseguiu com a brutalidade da polícia e atingiu o apogeu no momento em que o líder do grupo de rock, Renato Russo, passou a provocar o público classificando-o como ‘fascista’ e ‘boboca’ ao microfone”, relatava reportagem de VEJA.

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Renato Russo: rei do rock

Renato Russo: rei do rock

A coroa do rock – Emplacando sucesso atrás de sucesso, Renato Russo acabaria se firmando como o “novo rei do rock”, como retratou VEJA de 17 de outubro de 1990. A reportagem notara a guinada da banda, que trocava o som “pesado e primal” por “canções que falam de amor e melodias mais elaboradas”. O grupo rodava então o país em turnê, e com ela afastava o estigma da violência.

A Legião, dizia a reportagem,  herdava do RPM a coroa abandonada do rock nacional. Mas as semelhanças entre as bandas paravam por aí. Se Paulo Ricardo tinha “pose de astro pop inglês e voz sensual”, Renato tinha a “aparência de um jogador de pôquer em fim de noite e a sensualidade de uma vovó de pijamas”.

Renato já então sabia que era portador do vírus da aids, mas não tornou pública a doença, que só se manifestaria muitos anos depois. Em 1996, contraiu uma série de infecções oportunistas e foi internado várias vezes. Mesmo debilitado, conseguiu concluir A Tempestade. Não quis posar para as fotos de divulgação. Estava 20 quilos mais magro. Morreu três semanas após o disco chegar às lojas.

 

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