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Seria Dilma a viscondessa partida ao meio?

Se o leitor ainda não o fez, deve fazê-lo: ler “O Visconde Partido ao Meio”, do escritor italiano Italo Calvino. Não chegará a ser o seu livro de cabeceira, mas se ganha bastante em poucos mais de 100 páginas. Coisa para duas ou três horas de um daqueles domingos que, muitas vezes, se desenrolam sem […]

Por Reinaldo Azevedo Atualizado em 31 jul 2020, 11h05 - Publicado em 16 ago 2011, 07h55

Se o leitor ainda não o fez, deve fazê-lo: ler “O Visconde Partido ao Meio”, do escritor italiano Italo Calvino. Não chegará a ser o seu livro de cabeceira, mas se ganha bastante em poucos mais de 100 páginas. Coisa para duas ou três horas de um daqueles domingos que, muitas vezes, se desenrolam sem motivo aparente… Vocês conhecerão o Visconde Medardo di Terralba, que foi combater os turcos. Um tiro de canhão o rachou ao meio, na vertical. Uma parte, a direita, volta para a casa. Era a metade perversa, má no limite do tédio… dos outros! Depois de algum tempo, suas vítimas já haviam se acostumado com suas perversidades. Até que chegou o lado esquerdo, que havia sido cuidado por monges. Era de uma bondade… insuportável!!! Chamavam-no “o vagabundo”. As duas partes acabarão duelando pelo amor de Pamela. O resto, vocês conferem no livro.

Muitos quiseram decifrar o sentido metafísico do Visconde de Calvino. Até se tentou uma leitura política, com a “direita má” e a “esquerda boazinha”,  ambas impróprias para o convívio humano. “Reunidas” as metades do marquês, nem por isso se formou uma inteireza. Somos, os homens, assim mesmo: não cindidos em duas partes, mas em muitas. “Nada do que é humano me é estranho”, escreveu Terêncio. Porque não é, somos levados a fazer escolhas, que acabam determinando com quais pessoas decidimos viver e que moralidade nos serve. Aos escolher os outros, escolhemos o nosso próprio caminho. Potencialmente, podemos ser o monstro moral da metade má ou o abestalhado da metade boa; podemos atormentar os outros tanto com o nosso egoísmo com nossa generosidade. Nada pode crescer à volta de um e de outro; um mata com o seu fel; o outro, com o seu mel. Mas que não se conclua apressadamente que a virtude está no meio, no doce-amaro, na indefinição. A “verdade”, qualquer que seja ela, está no conjunto. A razão tem de domesticar, a cada dia, a besta cínica e a besta crédula que há em nós.

Por que me lembrei de Calvino? Será Dilma Rousseff “a presidente partida ao meio”? O lado petista, o mau — que, na alegoria do escritor, é “o direito” — é o procurador dos interesses do partido: compõe com a bandalheira; mantém pessoas suspeitas no governo; faz acordos espúrios; descumpre a palavra empenhada em campanha com uma severidade de fazer inveja aos ascetas; rende-se ao toma-lá-dá-cá do “presidencialismo de coalizão” com o ar vetusto de quem desvenda os segredos das Santas Escrituras… A metade “não-petista” — na alegoria, é a esquerda… —, ao contrário, deplora as malfeitorias; está empenhada em fazer a faxina no governo; acha deplorável a bandalheira; não cede às imposições do pragmatismo de chiqueiro que tem recebido entre nós o pomposo nome de “governabilidade”.

Antes que eu responda, sigamos um pouco mais no trato alegórico. A chamada base aliada, incluindo os petistas, dá mostras de não suportar a “metade boa” de Dilma: ameaça; faz chantagem; anuncia dias difíceis; emite nota de desagravo a pessoas investigadas pela PF — como fizeram o PR e o próprio PT —; demonstra disposição de arrombar os cofres públicos, votando benefícios impagáveis… Avancemos: teóricos do petismo estão preocupados. Acham que é preciso “re-unir” as duas partes da viscondessa. Uma Dilma que cedesse a todos os desejos da tal base — a metade má — seria indesejável. Afinal, guardam ao menos a memória da moral; mas esta outra, que pretende ser implacável com a corrupção, ah, essa também não é viável! Ela correria o risco de terminar como Fernando Collor, sem um Congresso para chamar de seu… A virtude, nesse caso, estaria no meio: uma Dilma que condescendesse com a bandalheira, mas não muito; uma Dilma que punisse a sem-vergonhice, mas não muito; uma Dilma, assim, mais ou menos… Moralista, mas não muito…

Já escrevi ontem aqui — e a Carta ao Leitor da edição de VEJA desta semana (que revela a trajetória do ministro Wagner Rossi) o lembrou com propriedade: Dilma tem o apoio do povo brasileiro para fazer a tal “faxina”, “limpeza” ou seja lá como queiram chamar. Desconheço, a não ser os atingidos pelas demissões saneadoras e aqueles que parecem estar com medo, quem se oponha à iniciativa.

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A presidente, no entanto, parece emitir sinais de recuo. O apoio da população ao saneamento do governo não parece bastante para que ela se anime a desmontar os esquemas incrustados nos ministérios, que remontam ao governo Lula, do qual, atenção!, ela era “gerente”. As metáforas eram fortes o bastante para que sejam relembradas: se Lula se apresentava como o “pai” do povo, o “produto eleitoral Dilma” foi vendido como “a mãe”. Talvez ela tenha chegado a se animar com a possibilidade de plasmar a imagem da moralizadora, o que conferiria ao menos uma identidade a seu governo, já que, até agora, convenham, não se sabe direito por que foi eleita. Ocorre que ela tem de cumprir acordos.

O visconde partido ao meio serve como metáfora dos dilemas morais com os quais, indivíduos,  nos defrontamos no cotidiano e vida afora; também podem ilustrar o maniqueísmo dos confrontos ideológicos, religiosos, culturais… A verdade transita ali,  em alguma zona cinzenta, que apela à nossa tolerância e à nossa compreensão.

Um governante, no entanto, não tem escolha. Ou põe os ladrões para fora do governo ou se torna cúmplice de seus crimes.

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