No país em que muitos intelectuais se comportam como prostitutas, seria fatal que prostitutas se comportassem como intelectuais. Ou: O declínio do que não chegou ao esplendor
No país em que se multiplicam intelectuais que se comportam como prostitutas e prostitutos, era questão de tempo que as prostitutas reivindicassem a condição de intelectuais. Não que, em muitos casos, a comparação não lhes seja realmente vantajosa e não possam produzir um saber que, vá lá, consegue ser ao menos mais prazeroso do que […]
No país em que se multiplicam intelectuais que se comportam como prostitutas e prostitutos, era questão de tempo que as prostitutas reivindicassem a condição de intelectuais. Não que, em muitos casos, a comparação não lhes seja realmente vantajosa e não possam produzir um saber que, vá lá, consegue ser ao menos mais prazeroso do que o rame-rame e o vai e vem de mera exaltação e justificação do poder em que se transformaram muitos setores da academia no Brasil. Vamos convir, não é? Receber dinheiro público — ou de estatais — para “pensar” e “produzir pesquisa” a serviço de um partido só é coisa diferente de cobrar para fazer gostoso porque é pior. A prostituta, ao menos no seu formato original — não me refiro às que passaram a falar como pós-doutorandas (já chego lá) —, tem o diferencial positivo da sinceridade. Não disfarça o que faz, não busca maquiar a natureza do seu trabalho. Já os que recebem capilé público para aplaudir o poder de turno tentam transformar a prostituição intelectual numa manifestação de resistência.
Leio no Globo um troço realmente espetacular. Reproduzo trecho em vermelho. Volto em seguida.
Quatro Prostitutas que participaram da campanha de prevenção à Aids com a frase “Sou feliz sendo prostituta”, que acabou sendo retirada do ar, vão enviar notificação extrajudicial ao Ministério da Saúde, na quarta-feira, conforme informou a coluna do Ancelmo Gois nesta terça-feira. Por meio do documento, elas pedem a revogação da autorização de uso de imagem e exigem a imediata suspensão das outras peças publicitárias em que aparecem.
As prostitutas da campanha argumentam “radical mudança” na campanha original, que deixou de privilegiar “o enfrentamento do estigma e preconceitos como estratégia de prevenção às DST e Aids” para focar-se apenas no incentivo ao uso da camisinha, tornando-se “higienizada e descontextualizada”.
“A proposta era reafirmar o entendimento, já consolidado técnica e politicamente, de que, para além das questões e informações biomédicas, o gozo de direitos básicos, autoestima e cidadania constitui condição imprescindível para a promoção da saúde, especialmente em grupos considerados sob maior vulnerabilidade social em razão do estigma, preconceito e discriminação social”, diz a notificação, elaborada pela Rede Brasileira de Prostitutas.
Segundo a ONG Beijo da Rua, o Ministério da Saúde retirou do ar peças que tratam de felicidade (“sou feliz sendo prostituta”), de cidadania (“o sonho maior é que a sociedade nos veja como cidadãs) e da luta contra a violência (“não aceitar as pessoas da forma que elas são é uma violência”), deixando apenas as que associam prevenção com camisinha.(…)
Voltei
Bem, prostituta que fala e argumenta desse jeito tem de estar dando aula na universidade, dedicando-se a conquistar clientes ideológicos, não é mesmo? Entendi. Campanhas de prevenção à AIDS não podem ser “higienizadas”… Claro, claro! “Estão falando de higienismo social, Reinaldo Azevedo…” Sim, sim, suponho que seja isso. Mas não deixa ter a sua graça mesmo assim.
Vejam bem: eu tenho uma visão, vamos dizer, “progressista” sobre esse tema. Existem casos, especialmente nos rincões do Brasil, de mulheres que foram levadas à prostituição ainda meninas por familiares. Não tenho números, mas não creio que seja a regra. A prostituição, no mais das vezes, é uma escolha mesmo. O antigo feminismo gostava de acreditar que ninguém faz isso por gosto. Faz! Tio Rei veio da pobreza. Havia as mulheres pobres, a maioria, que iam trabalhar nas fábricas, fazer faxina, vender cocada, e havia aquelas que decidiram fazer a felicidade da molecada e dos casados insatisfeitos. Era por gosto mesmo, não por determinação social ou da natureza. Assim como a pobreza, em regra, não faz o marginal, também não faz a prostituta.
Mas o determinismo social é coisa da velha sociologia, que ainda tinha duas patas no marxismo e duas no falso cristianismo da Escatologia da Libertação. O mundo mudou. O pós-marxismo vive a era da afirmação das identidades, da expressão do “eu-enquanto-isso-e-aquilo”. Ainda que os “mudernos” flertem com a ideia de que, na origem, a prostituição não é uma escolha (o Brasil é viciado numa história triste…), mudam a perspectiva: transformam a prostituição numa escolha ética mesmo, num modo de relacionamento social que não é apenas aceitável; é mais do que isso: ele seria portador de um saber não convencional que teria lições a dar à detestável sociedade conservadora. Nessa perspectiva, vista com maus olhos é a mulher pobre que decidiu, sei lá, lutar para superar a pobreza ou que venceu neste mundo cão. Esta seria não mais do que a “classe média” que Marilena Chaui odeia, entenderam?
Compreendam: não estamos mais diante do antigo paradigma da puta que é, no fundo, uma santa — o mito de Maria Madalena está aí (embora seja preciso fazer uma observação a respeito, já, já) — ou que exerce uma função redentora, de controle social. Leiam, a propósito, “Amar, Verbo Intransitivo”, de Mário de Andrade. Maria Madalena, a propósito, se arrepende e muda de vida; na perspectiva da sociologia prostituinte, não há arrependimento, mas transformação da atividade numa nova economia política.
E isso não se dá apenas com a prostituição, não! Os teóricos dos, por assim dizer, atos viciosos decidiram ocupar a cena para anunciar ao mundo que errados estão aqueles que, inseridos no mundo da produção — essa gente que faz a sociedade funcionar —, não compreendem a particularíssima abordagem, então, das prostitutas, dos consumidores de drogas, dos traficantes, dos que que saem por aí depredando prédios públicos, dos que resolvem submeter instituições a rituais de constrangimento e humilhação. São esses os heróis da modernidade.
O curioso é que a sociedade “careta” e “retrógrada”, a tal classe média que Marilena Chaui odeia, continua a ser a aquela que paga a conta de todas as generosidades que se cobram do estado, não é? Se alguns milhares, quem sabe milhões, decidiram enfiar o pé na jaca e consumir drogas, a conta ainda será distribuída entre aqueles que, sem consumir nada, se dedicam a trabalhar e a arrecadar recursos para o Fisco. Se milhares, quem sabe milhões, decidiram fazer sexo sem proteção, também essa conta será enviada àqueles reacionários, acusados de especialistas no papai-e-mamãe.
O declínio sem auge
Vocês assistiram ao filme “O Declínio do Império Americano”, dirigido pelo canadense Denys Arcand? Há uma cena em que uma prostituta masturba o seu cliente — um professor metido a pensador pós-moderno — enquanto faz uma longa arenga, muito douta, muito sábia, plena de saberes alternativos, sobre a crise do ano 1000… Ela não para nem mesmo quando ele avisa que, como diriam os portugueses, está “a vir-se”.
Essa história da notificação extrajudicial é uma evidência, sim, da nossa decadência. A única coisa chata é que a decadência colhe o país antes da chegada ao esplendor.