Há um vídeo circulando na internet em que informam a um sujeito que 740 pessoas morrem de gripe a cada ano no país. É um número absurdo, o sujeito diz. Então, perguntam a ele que número de mortes julgaria “razoável”. Sem tanta certeza, ele responde: “Umas oitenta?”. Nesse instante, oitenta pessoas dobram a esquina e caminham na direção dele. Só aí, com a massa de gente viva caminhando unida, é que nos damos conta (e o sujeito também) de que oitenta é um número brutal, avassalador. Um número que tende ao infinito: em oitenta pessoas, há infinitos sonhos, infinitas relações familiares, infinitos sentimentos. Por meio de um exemplo tão ilustrativo, entendemos que a resposta correta à pergunta é zero. Só pode ser zero. Qualquer resposta diferente corresponde à barbárie.
É curioso que, em tempos de quarentena, a arte venha reafirmando sua força e importância, até para os mais céticos. Quando tudo estava calmo, muitos esbravejavam que artistas eram “vagabundos” ou “inúteis”. Defendiam a ideia de que incentivos do governo eram “mamata”. Nesta situação extrema, são essas mesmas pessoas que, em casa, estão lendo, ouvindo músicas, vendo filmes e séries. De nosso lado, os artistas, temos feito a nossa parte.
Na literatura, editoras e escritores oferecem e-books gratuitos. A Companhia das Letras criou a campanha #LeiaEmCasa e liberou, até 6 de abril, dez e-books, como Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Verissimas, de Luis Fernando Verissimo, e Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne. O Vilarejo, de minha autoria, também está disponível de graça. Leya, L&PM, Martin Claret, HarperCollins e Rocco disponibilizam livros diversos a cada dia, como o ótimo Mulheres Empilhadas, de Patrícia Melo, e Arsène Lupin, O Ladrão de Casaca, de Maurice Leblanc. Sem falar nas centenas de bate-papos com escritores nas redes sociais, claro.
“Em tempos de quarentena, a arte vem reafirmando sua força e importância, até para os céticos”
As lives, aliás, têm sido um importante meio de contato em tempos de isolamento. Em seus perfis, cantores fazem apresentações semanais. Quando chega a noite, já me acostumei a escutar a voz sensível de Roberta Sá em seu Sarau da Sá. Nestes dias, ainda ouvi Chico César, Teresa Cristina, Dudu Nobre, Filipe Catto e Adriana Calcanhotto, graças aos vários festivais on-line que foram criados, como o Lá em Casa e o #TamoJunto. Peças teatrais também estão disponíveis on-line, como Os Sertões, do Teatro Oficina, Todos os Sonhos do Mundo, do grupo Satyros, e Alair, de Gustavo Pinheiro. Atores fazem seus espetáculos em lives, como Debora Olivieri, em Rosa, e Luis Lobianco, em Buraco Show Cabaré Online. Sem falar nos museus com tours virtuais, uma viagem sem sair de casa, como o Louvre, o Metropolitan, a Capela Sistina e os nossos Masp e Inhotim.
A arte tem sido companheira em tempos duros, seja como alívio, seja como reconexão. Não consigo terminar o texto sem pensar em Daniel Azulay, morto no último dia 27. Foi com Azulay que tomei coragem de desenhar e me apaixonei por mágica. Cada vida vale muito porque transforma outras. Azulay transformou a minha e a de muitas crianças. Infelizmente, não é só uma gripezinha. Fiquem em casa. E apreciem a boa arte.
Publicado em VEJA de 8 de abril de 2020, edição nº 2681