Então. A Mangueira levou Jesus pro Sambódromo. E foi bonito. Desfilou Jesus, rebelde com causa, na sua indignação e no seu calvário. Um Jesus de hoje, que chamou de Jesus da gente, e apresentou com cara e corpos de mulher, de índio. Fechou com um crucificado gigante – negro, jovem, de cabelos descoloridos, torturado e baleado como dezenas dos meninos mortos, todo dia, nas favelas e nas periferias Brasil afora.
Nasci de peito aberto, de punho cerrado…
Meu pai carpinteiro, desempregado Minha mãe é Maria das Dores Brasil…
Me encontro no amor que não encontra fronteira Procura por mim nas fileiras contra a opressão… Seguiu indagando: Mas será que todo povo entendeu o meu recado? Porque, de novo, cravejaram o meu corpo Os profetas da intolerância…
Favela, pega a visão Não tem futuro sem partilha Nem messias de arma na mão…
E quem não entendeu o recado. Quem é mesmo o messias de arma na mão?
Mangueira, seu samba é reza. Era o refrão.
A Grande Rio ensinou: Pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé. Eu respeito seu amém. Você respeita o meu axé. Portela foi direta: Nossa aldeia é sem partido ou facção. Não tem bispo, nem se curva a capitão. Beija Flor seguiu no papo reto: Por mais que existam barreiras, eu vim pra vencer no teu ninho. E é bom lembrar, eu não estou sozinho.
Em São Paulo, a Mancha Verde emendou com homenagem à luta das mulheres: É preciso lutar, exaltando Penhas e Marias/Que clamam por direitos, igualdade… Concorrente no futebol e no samba, a Gaviões da Fiel, com amor, cobrou paz: Por que viver num mundo sem amor? Se a paz aqui na terra acabou/E o caos é o grande rei deste lugar, que faz a mãe chorar…
Contundente, a São Clemente apostou que “o burro vai tomar a decisão”. Falou de jogo armado, de conto do vigário – e vigário de gravata, que abençoa a mamata. Lembrou dos laranjas – uma é três e três é 10. E deu a letra:
Só trabalho com dinheiro Chamou o VAR, tá grampeado Vazou, deu sururu Tem marajá puxando férias em Bangu…
Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu E o país inteiro assim sambou Caiu na fake News.
União da Ilha fez alegoria do desrespeito, desfilando poderosos, de faixa verde amarela no peito, sentados em privadas, de calça arriada. Tipo: “obrando e andando” para o povo.
Nem a pequena Feitiço do Rio deixa por menos. Ainda longe das grandes, no Grupo de Avaliação, desfila no sábado 29, fechando o carnaval e fevereiro dos assombros, de monstrengos e assombrações de carne e osso. Com samba homenagem à negra Luísa Mahin, rebelde de todas as lutas da Bahia do século XIX, manda:
Quilombo, a fuga é forçada. Roubaram saúde e educação. Justiça, ainda vedada. Imprensa esquecida, sem opinião.
No quintal da chefia nacional, o tradicional bloco Pacotão – famoso por fazer a imprensa com opinião e escrachar desditas do poder – repete a façanha e, no pé do Queiroz, solta marchinha com milícia e laranjal:
O Pacotão vai escrachar nesse carnaval, essa milícia e também o laranjal. O seu Queiroz, que vida boa, engordando a rachadinha da patroa. Esse Queiroz né mole, não, também remexe no cofrinho do patrão…
Foi mole, não. Teve mais. Samba, marchinha e recados. Brasil afora, simples, alegre e direto, o Carnaval faz desapego à cerimônia com o poder e os poderosos da vez. Zoando, canta o país no corner, surrado e calado, apanhando feio de falsos profetas – senhores dos preconceitos, milicianos das violências.
Tânia Fusco é jornalista